segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Racionalmente Emocional

          Nas profundezas da incerteza da minha realidade irreal, dou por mim a contemplar a importância paradoxal do que me rodeia. O que aparenta ser importante não o é, e o que aos demais nada importa é o que realmente interessa. Esta disparidade de perspectivas, movida apenas pela capacidade de uma empatia lógica, leva apenas a que haja uma frustração constante em diálogos e demais interacções sociais onde esta conexão antitética é mais que evidente.

            Uma vez mais, tudo se resume à impulsividade derivada de um estado emocional sobre-desenvolvido, onde todas e quaisquer construções e interpretações são distorcidas e desprovidas total ou parcialmente de qualquer interpretação lógica, resultando numa interacção potencialmente despropositada e consequentemente desconfortável.

            Tudo mais não passa de um equívoco, de uma falha no suposto complexo padrão de interpretação de um diálogo com pelo menos um locutor e um receptor. Um equívoco que pode muito bem ser resolvido, bastando apenas que haja uma predisposição em abdicar de forma mais consistente das tendências emocionais.

            Apesar da disparidade, da aparente discordância perante a capacidade de sentir, é importante referir que a mesma continua a ser importante. Contudo, e como nas mais variadas áreas e assuntos, tal tem que ser medido e contido, de forma a que discursos lógicos e coerentes não sejam gravemente prejudicados apenas porque um dos intervenientes se deixou influenciar pela sua tendência natural de sentir.

            Houve, há e continuará a haver lugar para tudo, principalmente para uma ponderação lógica nesta realidade longe de utópica onde sentir é mais vezes um obstáculo que a solução.

domingo, 19 de novembro de 2017

As fundações do ódio

           O ódio, tal como qualquer outra emoção, em toda a sua subjectividade, não é algo inacto, não é algo que surge da imensidão do nada. Tal como qualquer outra emoção, o ódio é incutido, é despoletado. O indivíduo em questão tem que observar algo que, pela sua forma de ser, desencadeará como resposta, ódio. Tudo não mais é que uma simples acção-reacção.

            Quanto à acção em si, independentemente daquilo que possa ser, tem um factor comum: ou é algo feito por alguém, ou algo que faz parte desse mesmo alguém. Duas distinções que, ao fim e ao cabo, são apenas faces opostas da mesma moeda.

            Na nossa forma de ser, na nossa forma de trabalharmos ansiedade, prontamente aprendemos que nem sempre nos é permitido ser quem somos, pelo que, em vez disso, devemos assumir um papel que, no máximo dos máximos, pode incluir traços da nossa verdadeira personalidade. Nesse mesmo desempenho, muito fica escondido do observador descuidado, nomeadamente interesses pessoais e acessos associados ao papel que se desempenha. Posto isto, a representação decorre, com essas mesmas acções a terem lugar, ocultas ou à vista de toda à gente, e é só uma questão de tempo até que alguém veja para além da ilusão, e no meio da desilusão e frustração, sinta uma insuportável onda de ódio.

            Se ódio é a reacção, então à acção é a desilusão e a frustração que se tem o prazer de se observar. Desilusão porque há uma realização face à mentira que até então era tida como verdade única e absoluta, e frustração porque não há nada que se possa fazer para contrariar o que aconteceu.

            Com isto, a acção aconteceu e despoletou uma reacção. Contudo, a reacção não dura somente no momento. Toda ela é uma constante que perdura até que não haja mais uma razão para continuar a odiar, o que por sua vez pode implicar toda uma série de vertentes, desde contrariar a acção que começou tudo, ou deixar que o ódio leve a melhor.

            O ódio em si é uma chama e, como a chama que é, necessita de combustível para se sustentar. Na ausência de novos episódios, irá forçar o seu hóspede a recordar o momento em questão e a avivar-se no processo. Perante esta situação, cabe ao hóspede ser capaz de encontrar uma alternativa, ou simplesmente sucumbir à chama.

            O ódio é natural na sua génese, sendo uma das partes obrigatórias na imperfeição da condição humana, e apesar de destrutivo, quando controlado, pode ser uma ferramenta valiosa. Quando o controlo é assegurado, o hóspede não arderá. Já o mesmo não se pode dizer do que o rodeia, ou daquilo que mais lhe interessa.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Quando a criação o exige

           Quando a criação o exige, ela acontece e nasce. Não interessa o que possa estar entre ela e a sua vinda, tal simplesmente acontecerá. Todos e quaisquer problemas desvanecem, permitindo que a mente possa estar apenas focada neste propósito que agora lhe é único e absoluto, pois nada é mais importante que a criação.

            Quando a criação o exige, nenhuma incapacidade, seja ela física ou emocional, é válida. Perante a iminente chegada da criação, o corpo cansado desperta e o corpo ferido sara, podendo somente retornar a estas condições ultimamente prejudiciais quando a criação está concluída.

            Quando a criação o exige, apenas ela importa. Ela ordena, e o corpo segue. Ela dita, e a mente obedece. E quando alguma oposição é feita, ela simplesmente consome o responsável pela mesma e curva-o perante a sua vontade.

            Quando a criação o exige, ela existe. Independentemente da circunstância, será apenas uma questão de tempo até que tal aconteça, pois a vontade da criação tem vontade própria, total e absoluta sobre o corpo, a mente e a alma.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Semi-consciência

            Com o passar do tempo dei por mim a aperceber-me da curiosa forma como as palavras aparentam surgir. Apesar de por vezes ser realmente necessário intervir, forçando-as a organizarem-se como é suposto, noutras, algo bastante peculiar tem lugar.

            Em inúmeros contextos, em que as ideias estão absolutamente presentes, elas nascem e crescem no papel de uma forma natural, como se fossem elas a tomar a iniciativa por detrás de todo o processo. Quando tal tem lugar, a minha consciência dispersa-se, ficando eu total ou parcialmente alheio ao que se passa à minha volta e ao que está a ser escrito diante de mim. A este estado, chamo-lhe estado de semi-consciência, e enquanto ele decorre, apenas as palavras e a história que elas querem contar interessam.

            É um estado e um processo que me faz questionar o tipo de controlo que detenho sobre o trabalho em questão. Enquanto que por vezes me vejo a escrever pela necessidade de escrever, noutras tudo flui naquilo que poderia apenas ser descrito como todo o meu ser não ser mais que um fio condutor entre a ideia e a sua criação.

            Algumas personalidades já se assumiram como escravas das suas criações, e embora eu sinta que existe uma política de concordância entre mim e as minhas, não consigo deixar de pensar que por vezes elas querem algo mais. E, muito sinceramente, ainda bem que assim é.

            Todo o processo é belo, desde a ideia que do nada surge, que é prontamente trabalhada tanto consciente como inconscientemente e que começa a ser desenvolvida por ela própria apenas para a minha consciência regressar e ver que tudo está concluído.


            O que quer que isto realmente seja, é uma excelente forma de trabalho e, uma que tenciono manter. Desde que me permita decidir como tudo fica, estou disposto a aceitar as respectivas condições. Desde que não se desenvolva nenhuma dependência, não haverá problema.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Respira

Inspira e sente as cinzas.
Deixa o seu ardor
Consumir o teu interior.
Aproveita este raro momento
Que surge com alento
Numa altura de caçadores e presas.

Respira e deixa o negrume entrar,
Percorrer e viver,
Crescer e plantar
A semente que te irá fazer recordar
A vida que um dia se irá perder.

Deixa-as fluir
Como as chamas que te rodeiam.
Deixa-as viver,
Como a ti deixaram.
Deixa-as morar,
Para manter o que te recordaram.

Aceita o teu destino.
Aceita a sua fatalidade.
Aproveita cada momento, digno,
Fiel à realidade,
Pois tal como das cinzas virás,
A elas tornarás.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Pulsar

De dor o meu coração padece
Ao saber do que disseste,
De que tudo não passava de uma ilusão,
De que tudo foi em vão.

Entristece-me profundamente,
Acreditar seriamente
Nesta tenebrosa verdade
De que agora já é tarde.

Sinta-se o que se sentir,
Venha o que tiver que vir,
Seguir-se-á em frente
Com um pulsar intermitente.

Fica apenas sabendo
Que as palavras, leva-as o vento,
E que o inexistente coração
Assim o é desde então.

Nada mais
Me enerva de proporções tais,
Como este odiar
Por detrás do desejo de te amar.


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Realização

           Sempre me disseram que os olhos eram o espelho da alma. Que através destes estranhos globos era possível ver a verdadeira natureza daquilo que nos move e daquilo que somos. Durante muito tempo dei por mim a acreditar nisso tudo, e admito que ainda acredito… de certa forma.

            Grande parte da minha vida foi passada a encarar os outros como livros abertos. Os seus maneirismos, as suas formas de ser e de estar, e principalmente os seus olhos diziam-me tudo aquilo que eu queria saber… tudo e muito mais.

            Todos não somos mais que uma compilação de segredos mais ou menos bem guardados. Enormes livros até, que podem muito bem ficar escondidos numa qualquer prateleira durante tempo incerto.

            Toda esta metodologia fascinava-me e movia-me. Fazia aquilo que gostava e era bom nisso. Quantos podem dizer o mesmo? Contudo, o humor sarcástico do destino decidiu pregar-me das suas e virar este meu talento contra mim. A quantidade de casos que me passavam para as mãos chegou a ser demasiada ao ponto de me provocar um esgotamento. Nenhuma mente consegue processar tamanha informação em tão pouco tempo e permanecer sã. A realidade distorceu-se e eu dei por mim a perder-me nela.

            O pior aconteceria não muito depois, quando estava perdido ao ponto de a realidade que agora tinha diante de mim, parecer a realidade real. Movido por mãos que já foram minhas, tomei os olhos que já foram meus como forma de, com sorte, voltar a ser eu… e posso dizer que consegui.

            Tudo voltou ao que era. Pelo menos a realidade em si. Quanto ao resto… mudou por completo. Deixei de ter livros para ler, pois não tinha olhos para o fazer. Foi um choque ao início. Aquilo que mais gostava de fazer foi-me tirado, de todas as pessoas, por mim mesmo. Mas se houve algo que realmente me marcou, foi a realização do que aquela expressão realmente significava. O espelho de algo não o representa, e no meu caso em concreto, face às reacções que todos os meus restantes sentidos vieram a contemplar, a minha alma é do mais horrendo que se pode ver.

sábado, 16 de setembro de 2017

Inesperado

           Era um dia como outro qualquer e ali estava eu no café do costume a fazer o mesmo de sempre, a olhar para as minhas notas enquanto os meus próprios pensamentos me cercavam. Longe estava eu de alguma vez imaginar que este dia ia ser muito diferente dos anteriores.

            No meio de todo o reboliço que se fazia sentir, conversas sobre temas que não interessam a ninguém e os suspiros silenciosos do dono do estabelecimento sempre que alguém faz um pedido, ela entrou. Uma rapariga alta, de cabelos e olhos escuros, pele pálida e um ar total e absoluto do mais puro desinteresse.

            Aproximou-se do balcão, fez o seu pedido ao gerente enfadado e confrontou a sala. Após alguns segundos de ponderação, aproximou-se de mim, o tipo com a única mesa livre para mais alguém.

            - Importas-te que me sente aqui? – perguntou ela.

            - De todo – respondi eu – força.

            Ela sentou-se e rapidamente fez aparecer o seu telemóvel, perdendo-se nele enquanto provava ocasionalmente o seu café.

            - Nunca te vi por estes lados – continuei eu – o que te traz a um sítio destes?

            - Sou de cá – respondeu ela, sem levantar os olhos do telemóvel – arranjei foi trabalho noutra parte do país.

            - De férias então?

            - Sim. A ver o que mudou.

            - Desculpa desiludir, mas aqui nada muda.

            Ela levantou o olhar e contemplou a sala.

            - Não, pelo menos nada que interesse.

            Ela olhou para mim e ao ver-me a sorrir, perguntou:

            - O que foi?

            - Nada, estou apenas a constatar que és a pessoa mais interessante nesta sala.

            Ela semicerrou os olhos na minha direcção:

            - Desculpa?

            - Permite-me que me explique melhor. Sempre me habituei a ver toda a gente como um livro aberto, uma história prestes a ser contada ou ainda em construção. Aquele casal ali ao fundo está a tentar dar algum sentido a uma relação que começou cedo demais e, como tal, sem as devidas fundações. Aquele grupo de amigos está a tentar, no meio daquele alarido todo, disfarçar o quão miseráveis são realmente as suas vidas; desde sobrecarregar os pais com problemas a estarem-se nas tintas para o seu próprio futuro. Ali o gerente já perdeu o gosto por isto há muito e só quer que alguém lhe fique com o café o mais depressa possível. Já tu tens um propósito contigo, algo mais significativo, o que por sua vez faz de ti interessante.

            Ela esboçou um curioso sorriso, cruzou os braços em cima da mesa e avançou sobre eles.
            - Se todos são um livro aberto para ti, o que consegues dizer sobre mim?

            - Para começar, não te conheço e, como todo o bom livro, preciso de ler mais que a contracapa para poder ter uma opinião fundada sobre ele.

            Ela manteve aquela expressão enquanto me olhava fixamente.

            - E posso saber o que é isso? – perguntou, apontando para as minhas notas.

            - Nada de… - as minhas palavras foram interrompidas pelas suas mãos a tomarem algumas das folhas de papel soltas – especial – continuei.

            - Bem – disse, enquanto trocava de pedaço de papel – o que quer que seja, não consigo perceber o que está aí escrito – continuou, enquanto me devolvia as anotações.

            - O plano é esse – disse, devolvendo-lhe o sorriso.

            - Então, vens para aqui escrever o que quer que seja que tens aí.

            - Algo do género.

            - E pode-se saber o que é?

            - Ainda estou a tentar perceber.

            Um novo olhar estranho:

            - Não sabes o que estás a fazer?

            - É mais uma questão de não saber qual é que a melhor opção do que não saber ao certo.

            - A mim parece-me a mesma coisa.

            Levantei o olhar dos meus apontamentos e vi que o sorriso dela continuava lá:

            - Creio que não estás errada.

            - Eu sei que não.

            Os nossos olhares cruzaram-se novamente, e ocasionalmente dissipavam-se nos nossos afazeres, as minhas notas e o telemóvel dela, até que este tocou uma só vez. Ela tomou-o e leu a mensagem que acabara de receber.

            - Desculpa, mas tenho que ir.

            - Claro, não há problema.

            - Queres combinar alguma coisa para outra altura?

            - Parece uma boa ideia.

            Trocámos de números e ela avançou até à saída. Abriu a porta e olhou uma última vez na minha direcção, sorriu e acenou, ao que eu prontamente retribuí. Depois disto, restou-me poder observá-la até que desapareceu para além da vitrina do lado esquerdo.

            Voltando às minhas notas, um súbito pensamento surgiu: poderia ser este o começo de um final feliz?


            

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Sentir a Incerteza

Sinto-me de forma estranha.
Sinto um desconforto
Sem qualquer tipo de retorno
Que de tamanha forma me enfada
Em busca de um novo dono.

Sinto a incerteza.
Sinto a falta de sentir
De um futuro incerto que há de vir,
Sem qualquer tipo de pressa,
Pois assim quer existir.

Sentir a inexistência de sentimento,
Perante a certeza de um futuro incerto,
Fica claro que o momento
Deve ser algo a ter por perto.

Perante a nitidez fosca
Daquilo que se aproxima,
Resta saber se a realidade é tosca
Ou algo de bela rima.

Sinta-se então
Como tão bem se sabe sentir
Pois para tal não é preciso pedir
À gente que não nega a emoção
Na hora de partir.

Mas perante tão sentimental cena,
Valerá realmente a pena?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Quando as luzes se apagam

Quando as luzes se apagam,
Os monstros saem à rua,
Divagando pela sua beleza nua e crua,
Esperando e atacando
Aqueles que nela param.

Meros mortais,
E nada mais.
Pessoas vãs tais
Cujos desejos animais
Não fazem deles mais
Que presas com desejos fatais.

Pois rezai então,
Pedindo um qualquer perdão
Que não verá qualquer razão
Neste sofrimento que sentirão.

Quando as luzes se apagam,
Todos os mortais são frágeis,
Ora por sonhos ou reais paragens,
Que os fazem temer tais imagens.

A mortalidade é real
E tal não se pode negar.
Falsos ideais de poder aqui não entram,
Ou não deveriam entrar,
Pois perante tal mal,
Apenas a morte deve ter lugar.

Negras aves pelos ares voam,
Angelicais cantos elas entoam,
E em mim prontamente repousam
Algo que sabiamente ousam
Para que assim todos ouçam.

A minha mortalidade desafiaste,
E algo nela libertaste:
A verdadeira divindade
Que governa a humanidade.

Quando as luzes se apagam,
As aves cantam,
Vocês gritam,
E pelas ruas corre um escarlate pranto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Apenas

         Já chegaste? Ainda bem. Precisava mesmo de falar contigo. Por favor, senta-te. Algo me diz que ainda vou falar durante um bocado. A verdade é esta: tu completas-me. Tu és a única pessoa capaz de preencher o vazio que há muito me consome. Tu, e só tu, és capaz de apaziguar as tormentas pelas quais por vezes passo. Apenas tu consegues deixar-me a respirar de alívio quando mais preciso.

            Aproveitando esta onda de verdades, tenho que te confessar que não posso mais viver nestes termos.

            Apesar de tudo, apesar do que te acabei de dizer, tenho que reconhecer que nada disto é saudável. Tudo isto é patológico.

            Lamento dizer-te, mas isto entre nós tem de acabar. Não queria ter que chegar a este ponto, mas apesar dos meus esforços, não o consigo evitar.

            Desculpa, mas tenho que te dizer aqui e agora que isto assim não funciona. Espero que consigas perceber e que me perdoes pelo que estou a fazer. Acredita que jamais quereria magoar-te, seja de que maneira for… e tenho consciência do peso destas palavras.

            Talvez noutras circunstâncias tudo fosse diferente, mas assim nada pode resultar… apenas porque tudo é real menos tu.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Projecções Inconscientes

             Aconteceu novamente. Do nada, a imagem surgiu. Não a imagem, mas sim uma sombra dela. Parte de um sorriso, parte de algo que se calhar nunca existiu, partidas de uma mente que na verdade tem vontade própria.

            Nas profundezas daquilo que me é desconhecido, planos têm lugar sem o meu conhecimento e, consequentemente, sem o meu controlo. O resultado é esta junção de projecções, de retratos de um passado cuja razão de existência se prende somente a memórias que não passam disso, mas que, por vontade própria ou por forças externas que me são desconhecidas, procuram ser algo mais.

            Contornos de um corpo que não existe, palavras que nunca foram proferidas, maquinações da total ausência de controlo, pois o subconsciente ainda é inacessível. E, por isso, elas surgem, uma e outra vez.

            Curioso problema este que tantos claramente afecta. O que será melhor? Viver no passado através de memórias que vão sendo livremente moldadas, ou ignorá-las perante a incerteza do futuro?

            O comum dos mortais diz que não se pode fugir do passado… mas aqui alguém está realmente a fugir?

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Objectivamente objectivo

         Muito se pode dizer quanto ao que faz de nós realmente humanos. Debativelmente, a opção mais fácil é a capacidade de sentir, não numa perspectiva fisiológica, como sentir frio ou calor, mas sim ao nível das emoções. Procurando desenvolver, e assumindo isto como verdadeiro, a capacidade de sentir confere-nos humanidade, mas a que custo?

            A nossa própria existência encontra-se marcada por episódios onde essa capacidade de sentir mostrou ser algo verdadeiramente atroz. Acontece todos os dias, bastando para isso que alguém faça mal a outra pessoa (seja de que forma for) porque isso lhe vai permitir sentir-se bem ou até mesmo realizado.

            Ao removermos o filtro que as emoções realmente são, apercebemo-nos de que elas são, não um atenuante, mas sim um bloqueador. No caso concreto (variando, obviamente) surgem apenas como uma distracção, algo que surge, desviando o interesse e o foco do problema ou questão que se encontra em vias de ser resolvido. Um bom exemplo disto pode ser ilustrado na forma de um problema ético/moral: encontras-te no centro de dois edifícios, e ambos estão armadilhados com explosivos. No da tua esquerda está a pessoa que mais amas à face da Terra, e no da direita tens uma equipa de médicos. Quem decides salvar?

            Há duas interpretações distintas deste mesmo problema, e, obviamente, aquela que se encontra directamente relacionada com a questão das emoções consiste no salvamento da pessoa que se ama, priorizando-se, assim, as vontades e desejos próprios em vez do bem comum/em longo prazo. A outra face da moeda implica uma interpretação, quiçá mais moral, ou simplesmente mais objectiva. Enquanto que salvar a pessoa que se ama seria benéfico essencialmente para nós, salvar os médicos resultaria num bem maior onde outros para além de nós seriam incluídos.

            Serão as emoções realmente importantes? Tal como este mesmo tópico, é debatível. E o mesmo pode dizer-se do pensamento objectivo? Se calhar não. A partir do momento em que ignoramos este filtro e encaramos as demais situações conforme elas são, é-nos possível arranjar uma solução em nada egoísta. É claro que para tal é necessário que a própria personalidade esteja construída nesse sentido, mas, de qualquer das formas, conseguir dar este grande passo já é bastante positivo.

            Poucos são os que conseguem fazer isto, observar e não ver a natureza de tudo. Perceber como tudo funciona, quem afecta e como. Perante isto, é apenas uma maior pena ver que mesmo esses poucos caem na tentação de agir por benefício próprio, porque, verdade seja dita, tal faz parte da nossa natureza. Sempre fez, e sempre fará.

            Irónico que aquilo que nos dá a nossa humanidade é o mesmo que a tira.

domingo, 13 de agosto de 2017

Nua e Crua

           O mundo em que vivemos é decadente e asqueroso, repleto de seres que agem somente com os seus interesses em vista enquanto criam a ilusão de que o fazem por um bem maior. Nem sempre foi assim, ou melhor, nem sempre aparentou ser assim. O mundo não tem culpa, aqueles que não se sabem conter face à posse de poder é que têm.

            A complexidade de toda a farsa é o grande segredo de tudo. Não é à toa que se diz que nunca se deve subestimar o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos, e tal é sempre tido em consideração. Basta que esta constante se mantenha na equação para que tudo seja facilmente manipulável e nenhuma pergunta ou constatação inconveniente seja feita. Nem todos conseguem aperceber-se disso, não só por causa do esforço tremendo para o impedir, mas também do estado de espírito necessário para ver para além da mentira.

            Quando se está durante um longo período de tempo num túnel sem fim onde a luz no seu fundo está sempre à mesma distância, torna-se fácil observar e estudar as pequenas teias que abrangem tudo e todos, e que os movem ao bel-prazer de quem as puxa.

            Não sinto qualquer tipo de prazer em constatar este tipo de realidade, muito pelo contrário. Tanto quanto sou levado a crer, ainda estou nesse mesmo túnel, apenas mais perto da luz, o que quer que seja que isso represente. A verdade é que a realidade é esta. Nua e crua. A mão que é estendida, quando chegar o momento apropriado, aparecerá para pedir algo em troca. A palavra que foi prometida, ao ver que afinal não é vantajoso, não regressará para ser cumprida. Ao fim e ao cabo, a podridão continuará a arrastar-se, apenas disfarçando-se nas mais esbeltas formas.

            A ignorância não deixa de ser uma bênção, e não nego o meu ocasional interesse em trocar de perspectivas com outros, não só para que eles também se apercebam, como também para ver algo mais que não isto. Mas recuso-me a ceder a esta tentação, não por eles pois não me dizem nada, mas sim porque as profundezas da minha mente não são um bom sítio para se estar… mas, para aqueles que agora conseguem ver, o verdadeiro desafio fica em cima da mesa.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Por entre os vivos

       Lembro-me da primeira vez que morri. Lembro-me de sentir os problemas que me atormentavam a transformarem-se em nada. Lembro-me de sentir o vazio a tomar-me até que eu me tornei parte dele.

            Naquele único momento, naquela transição, não havia nada a não ser paz e tranquilidade. Nada passava pela minha mente. Apenas estava ali, a fluir, a navegar algures.

            Nas profundezas da obscuridade, senti algo a chamar-me. Até aos dias de hoje, continuo sem saber o que esse algo realmente era. Apenas que disse o meu nome e que, quando dei por mim, o nada agora era algo, ar entrava e saía dos meus pulmões e sangue corria novamente pelo meu corpo. Estava novamente vivo, mas havia algo de diferente. O chamamento continuava presente, e nele um propósito.

            O período de aceitação não foi fácil. Dei por mim a regressar àquele estado mais que uma vez, mas independentemente de como o fazia, vida era-me sempre devolvida. O que quer que seja que me obrigava a voltar, não parecia enfuriar-se com este meu comportamento. Sentia o mesmo que sentira da primeira vez, um chamamento sereno que queria apenas ver-se cumprido. Dei por mim a ceder e a aceitar, pois mais nada podia fazer.

            Quanto tempo passou? Quantos ajudei na transição? São duas das perguntas às quais não tenho resposta. O tempo deixa de ter qualquer interesse quando ele deixa de fazer parte das nossas vidas.

            Ainda me lembro da primeira vez que morri. O resto? É história.

Aqueles que cavam

           A noite estava calma, tal como o ambiente do bar. Para além de alguns bêbados inanimados em cima de algumas mesas ou do balcão, restavam apenas o barman, três cavalheiros a jogar poker e o seu dealer. Várias já tinham sido as mãos trocadas entre eles, tal como os avultados montes de dinheiro, que agora já tinham visto o mesmo dono mais que uma vez.

            O barman limpava o balcão com desinteresse absoluto ao que se passava, focando-se apenas na monotonia da sua tarefa, não tendo quaisquer problemas em desfazer-se de quaisquer pesos embriagados que o obstruíam. Pesado era o som do embate assim que caíam no chão, mas, ainda assim, incapaz de os acordar, soltando apenas um sonoro ronco.

            O tempo passava, tal como a monotonia, apenas quebrada pelas ocasionais pancadas na mesa, as habituais deixas que o jogo de poker exige, embriagados ressonares e o som de um pano húmido a ser passado por um balcão de madeira gasta e copos de vidro sem remedeio algum.

            As horas passavam, contadas pelos cigarros que o dealer fumava. Ele fixava as cartas e os jogadores com um olhar vazio, baralhando e dando as cartas de forma tão natural e mecânica como se de respirar se tratasse.

            O tempo passava e o dinheiro acumulava-se na mesa, o que significava que se esvaziava no bolso. Quando começou a ficar escaço, o desespero começou a tomar lugar e os ânimos exaltaram-se. Um gesto de batota que se ficou por saber se realmente aconteceu ou não fez com que todos se levantassem e, ora por sorte ou por azar, tomaram os seus revólveres em simultâneo e premiram os gatilhos. Os três caíram mortos.

            O estrondoso espalhafato chamou a atenção do barman e de alguns dos restantes clientes que, ora retomavam o seu estado quase comatoso, ou tentavam sair do bar tal como podiam. O dealer contemplou a cena com o seu olhar vazio, e apagando o seu cigarro na mesa, levantou-se. Tomou a pá imunda que tinha deixado encostada atrás de si, e tomou um dos corpos.

            - Trabalhar a esta hora? – perguntou o barman.

            - É melhor enquanto os corpos estiverem frescos.

            - Não questiono.

            Assim que o dealer se viu diante da porta, ouviu novamente:

            - Pode-se quebrar este ciclo?

            O dealer parou, pousou a pá ao seu lado e respondeu:

            - Há dois tipos de pessoas, as com armas, e as que cavam. As que têm armas só se apercebem do que têm nas mãos quando já é tarde demais. Resta aos que cavam deixar uma mensagem para os que cá ficam. Pode ser quebrado? Não me parece. Haverá sempre alguém com uma arma e alguém para o enterrar… Dá-lhe uma olhadela neles. Eu já volto.

            E saindo do bar, deixou-se levar pelo abraço da escuridão.

Quando se observa o abismo

         Olha-me nos olhos e diz-me o que vês. Vá, diz-me. Estou à espera. Sempre disseram que os olhos são a janela para alma, por isso pergunto-te, mais uma vez, o que é que vês? Vês alguma alma? Vês a sua ausência? Algo a tomar o seu lugar? Se calhar esta última. Vem, deixa-me mostrar-te. Olha, e deslumbra-te!

            Vês todos estes seres distorcidos? Vês as suas figuras a torcerem-se sobre elas próprias, a gritar com as cordas vocais que já lá não estão? Bela a música que cantam! Uma inspiração e uma verdadeira elevação do espírito! Que mais temos? Que mais vês? Olha além, os contornos desfigurados de pessoas reais. Mas atenção que não são estas projecções que o são. Não. Elas são-no mesmo assim lá fora. Aqui elas são simplesmente retratadas tal como são, expostas em todo o seu horroroso e nojento esplendor! Mas anda que isto pouco ou nada interessa. Afinal de contas, só agora é que estamos a começar!

            Olha aqui em baixo. Olha bem. Parece um espelho, não parece. Mas não olhes muito tempo. Podes perder-te no outro lado, e sabe-se lá o que seria de ti! Olha agora ali. Vês todos aqueles ligamentos? Todas aquelas saturações ainda a escorrer este sumo vital. Olha de mais perto. Sim, consigo ver a realização nos teus olhos. Os pontos ainda estão frescos. Sim, todos eles, e sim, todos eles têm longos anos. Depois de algum tempo, apercebes-te que não vale a pena curar o que quer que seja e que é melhor deixar tudo como está! Mas anda, há muito mais para ver. Mas não mexas em nada! Rasga isto outra vez e estarás em apuros!

            Estamos mais perto agora. Consegues ouvir os gritos? Estes são novos. Enquanto que os outros eram mais reais, estes não são tanto. Eles vêem da imaginação, da vontade total e absoluta de fazer com que os soltem! E porque é que estão aqui? Porque a força de vontade para os conter é demasiado grande! Torna-se mais debilitada por vezes, mas aguenta-se… até ao dia em que não o fará. Ah, como os imagino a soltar guturais gritos enquanto a pele é rasgada, a carne cortada e os ossos partidos. A espera por algo tão grandioso mata-me!

            Ora cá estamos, no centro de tudo! Nas profundezas da mente de onde tudo isto é fruto! Não é belo? Não é magnífico? Não te dá vontade de simplesmente largares tudo e te perderes aqui?

            Diz-me, o que é que vês? Diz-me… ou será que terei de fazer de ti um exemplo?