sábado, 25 de janeiro de 2014

         A noite já vai longa. Contemplo o céu estrelado neste banco à beira rio, iluminado pelas inúmeras estrelas. Os meus pés batem paciente e ritmadamente no chão de pedra lisa. Olho para o relógio, quase 3 da manhã e não há sinais dele. Atrasado como sempre, é o que eu penso, e em mais podia eu pensar, se não estivesse já farto de o fazer. É o que tenho feito desde sempre, é o que me tem destruído por dentro, e o que me trouxe de volta para me destruir novamente.
            Levo as mãos à cabeça enquanto as imagens e os tempos voltam a mim. Apoio a cabeça nelas e os cotovelos nos joelhos, contemplando o nada, a escuridão, ou pelo menos assim queria eu que fosse. Suspiro ruidosamente à espera que passe, e essa mesma postura eu não abandono.
            Oiço passos, mas não levanto os olhos para ver quem era.
            - Vejo que estás à minha espera – disse ele.
            - Não estou sempre? – perguntei eu, ainda com a cara mergulhada nas mãos.
            - Tinha coisas para fazer – continuou ele, avançando e sentando-se ao meu lado.
            - Como sempre.
            - Eu pensava que isso já tinha passado.
            - Eu também.
            Ficámos em silêncio por alguns segundos, até que ele perguntou:
            - E qual é o plano agora?
            - O que te parece?
            Reparei que ele ficou a olhar para mim seriamente, ou melhor, uma surpresa séria, como se não acreditasse que lhe estava a pedir aquilo.
            - E eu a pensar que não vias essas coisas com bons olhos.
            - Tecnicamente seria um homicídio e não um suicídio.
            - Mais um homicídio a pedido que outra coisa.
            - Mas ias ser tu a premir o gatilho e não eu.
            - É verdade.
            - Não te agrada a ideia?
            - A questão está longe de ser essa.
            - Vais estar com moralismos agora?
            - Queres que esteja?
            - Não, obrigado.
            Seguiu-se mais um momento de silêncio, desta vez bem mais longo, em que ele nada fez a não ser olhar para mim ou para o horizonte, enquanto eu continuava com a cara mergulhada nas mãos.
            Senti um clarão, rapidamente seguido pelo som de um trovão. Segundos depois comecei a sentir tímidas gotas de chuva a caírem-me na nuca.
            - Parece que vem aí uma tempestade – disse ele.
            - Não podíamos ter escolhido um momento melhor.
            - Se estás à procura de uma morte poética, sim, dificilmente arranjarias algo melhor.
            - Vamos acabar com isto de uma vez por todas.
            - De certeza?
            Dei por mim a pensar. Seria mesmo isto que eu queria? Não haveria uma outra solução? Não seria possível resolver este problema sem ser desta forma? Será… já chega…
            - Sim.
            - Muito bem.
            Ele levantou-se e colocou-se diante de mim. Como que se apercebendo do que estava prestes a acontecer, a mãe natureza pareceu querer demonstrar a sua pena, fazendo com que a chuva caísse com maior intensidade. Ouvi o som de um casaco ser afastado e o de uma pistola a ser removida do seu coldre.
            - Vais querer ficar assim?
            - Não – respondi eu, levantando a cabeça e encostando-me ao banco do jardim, olhando para aquela figura com o rosto tapado por óculos escuros, um cachecol e um capuz – tenciono morrer com alguma dignidade.
            - Foi um prazer.
            - O prazer é todo o meu.
            Vi um clarão ao fundo, mesmo por detrás da figura, e não tardou a seguir-se o som de uma bala a ser disparada, abafado pelo som de mais um trovão.

            Enfim paz.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

           Há quem diga que não se pode estar pronto para lidar com a morte de alguém, mas tal é possível e encontra-se ao alcance de qualquer um, bastando apenas mentalizar-se que é algo que irá acontecer mais cedo ou mais tarde. Ainda assim é natural o choque e os sentimentos resultantes que se manifestam nos dias seguintes, marcados logos por uma nova rotina que já não pode contar com essa pessoa.
            Esse dia acabou por chegar, e aqui me vejo, a contemplar todo o funeral. Ainda me deixa atónito a quantidade de pessoas que decidiu comparecer. Olho em volta e para os portões. Cada vez são mais os que os atravessam. Talvez preferisse assistir a tudo de uma forma mais discreta, talvez num canto com uma boa visibilidade, mas o mar de gente arrastou-me para aqui para a linha da frente. Sem dúvida alguma foi-me concedido o melhor lugar. As palavras do padre embalam-me enquanto contemplo pensativo os dois caixões de madeira de carvalho envernizada que estão prestes a ser enterrados. Ainda pensei em não comparecer, mas achei que devia dirigir-lhes um último obrigado, esforçando-me para estar presente e contemplando-os em silêncio. Devo-lhes muito e isso é certo, aliás, não só é certo como claramente visível. Parece que a sua existência não foi significativa só para mim, e as lágrimas de uns e de outros são a prova viva disso.
            As despedidas são feitas e perguntam se alguém está disposto a dar umas últimas palavras. Talvez eu fosse a pessoa mais indicada, mas optei por me remeter ao silêncio. Ninguém se voluntariou e ninguém reparou que eu lá estava. Porque é que haveriam de o fazer?

            Chegou a hora de devolver os caixões à terra. Vários homens agarram neles e mergulha-nos delicadamente nos seus locais de repouso enquanto o som de inúmeros prantos se intensifica e ecoa por todo o espaço. Talvez devesse segui-los, mas nada sinto. Talvez seja verdade o que dizem, que as lágrimas são um dom a que apenas os humanos têm o direito… e que os demónios nunca choram.


Ass: Daniel Teixeira de Carvalho