Era um dia como outro
qualquer. O Sol punha-se para dar um quase fim a mais um dia, enquanto ela saía
do escritório em que trabalhava e trocava algumas mensagens com o namorado.
Após alguns longos minutos naquele horrível trânsito,
típico de um conjunto de pessoas que está ansiosa para chegar ao conforto dos
seus lares. Felizmente, nada a impediu de chegar ao seu. Estacionou o carro no
passeio, chegou à entrada do prédio onde vivia e abriu a sua caixa do correio.
Contas e mais contas, alguma publicidade (o costume), mas havia algo mais, um
envelope amarelo-torrado com algo bastante resistente no seu interior. Não
reconheceu quem lhe enviara, e envolta na curiosidade, subiu até ao seu
terceiro andar.
Abriu a porta, deixou as chaves em cima de uma taça de porcelana
que tinha em cima de uma pequena mesa à entrada, e ao lado dela deixou tudo o
que tinha tirado da caixa do correio, tudo menos aquele envelope. Avançou até
ao seu longo sofá de cabedal preto (cabiam perfeitamente três pessoas),
sentou-se nele, e abriu o envelope. Tirou de lá uma pequena folha de papel e
uma cassete de vídeo. Desdobrou a folha e leu “Este era o último desejo dele.
As minhas condolências”. A curiosidade tinha-lhe sido substituída pelo terror,
e tudo o que bastou foram aquelas palavras. Felizmente, ou não, algo nela
insistira para que guardasse o leitor de cassetes que repousava ao lado do seu
modesto ecrã plasma. Contornou a pequena mesinha de madeira de carvalho que
tinha à sua frente, ideal para suportar as pernas depois de um longo dia de
trabalho, debruçou-se sobre o leitor, colocou nele a cassete, pegou nos
comandos e voltou a sentar-se. Ligou a televisão e carregou no “play”.
A princípio, apenas se via uma mancha branca, indistinta e
tremida, mas a imagem começou a ficar mais focada e estável, até que se viu
nitidamente uma modesta cadeira de plástico, envolta por umas paredes brancas.
Nela sentou-se um jovem bastante pálido e de longos cabelos pretos
despenteados. Olhou para a câmara com os seus olhos marcados por fundas
olheiras e esboçou um inocente sorriso:
- Olá – disse, numa voz bastante tremida – há quanto
tempo? Hã? Sei que não temos trocado muitas notícias desde a última vez que
estivemos juntos, e espero que esteja tudo bem contigo.
Parou de olhar para a câmara e centrou-se no chão, e
assim ficou durante alguns segundos, como se estivesse a pensar em cada
palavra.
- O que me leva a fazer este vídeo, é que… eu não aguento
mais – voltou a olhar para a câmara, com um olhar totalmente diferente, já com
lágrimas a formarem-se nos seus olhos – eu sei que devia continuar e tu
encorajaste-me a isso, mas eu não consigo… não consigo mesmo.
Nova pausa, e as lágrimas já caíam no chão.
- Já passou tanto tempo… e eu não consigo habituar-me à ideia…
a dor e o vazio que sinto desde o momento em que acordo e até ao momento que me
deito… estão cada vez mais insuportáveis… e os pensamentos… que devia fazer-te
passar pelo que estou a passar – cada palavra era interrompida por um forte
soluçar – eu não quero fazê-lo… tu não mereces.
Nova pausa, e neste momento, ela levava as mãos ao rosto,
numa demonstração da mais profunda pena, querendo apenas estar ali para o
confortar com algumas palavras, algo que já fizera. E ao olhar para ele
reparava que estava diferente, mais magro e mais pálido, quase cadavérico.
- Já magoei tanta gente numa tentativa parva de me fazer
sentir melhor… mas não posso mais… eles também não tinham culpa… eu é que
tenho! – exclamou apontando para ele com os dois indicadores – já chega… não
encontro solução em lado nenhum… e não quero correr o risco de te fazer a ti ou
a quer outra pessoa próxima a ti o que fiz aos outros… nunca me perdoaria –
nesse instante, retirou uma pistola de trás das costas, ao que ela arregalou os
olhos em pânico, e tentou reconfortar-se com a ideia de que era apenas mais uma
das suas piadas – desculpa – disse, apontando a pistola à sua têmpora direita –
amo-te – e dito isto, premiu o gatilho, que desencadeou um valente estrondo,
que a fazer saltar de susto, e chorar ao ver aquele corpo inanimado, ainda a
dirigir um olhar para a câmara, um olhar vazio, até que caiu da cadeira, junto
dos restos de sangue que tinham sido projectados contra a parede da direita.
O corpo foi encontrado horas depois pelo senhorio do
jovem, que, após o caso suscitar a atenção da imprensa disse, em lágrimas, que
era um rapaz que não fazia nada a ninguém e era amável para todos, sempre
disposto a ajudar quando lhe pediam, tendo, talvez, como único defeito, passar
muito tempo sozinho. Apesar disto tudo, havia quem jurasse a pés juntos que
tinham visto aquele mesmo rapaz em desacatos em bares em discotecas, saindo ele
deles com alguns arranhões, e os outros em estados bastante graves para as
urgências. A isto o senhorio dizia que não passavam de história que inventaram
para denegrir a imagem do rapaz e para justificar o que fizera, mas ele não
sabia que era tudo verdade.
Ela chorou como nunca tinha chorado o resto do dia ali,
no sofá, sem coragem para olhar para o ecrã onde se via apenas um quarto
abandonado e salpicado com sangue. Perguntou-se mil e uma vezes porque é que
ele tinha feito tal coisa. Porquê?! Porque é que ele não aguentou?! Porque é
que ele não seguiu em frente?! PORQUÊ?!!
A questão é que não somos todos iguais, e, para alguns,
quando estão no fim das suas forças e a cair desamparados em direcção ao nada,
a morte consegue ser bastante tentadora, e aparenta ser a única solução.
Ass: Daniel Teixeira de Carvalho