domingo, 1 de janeiro de 2012


           Ao abrir os meus olhos vejo um telhado velho suportado por fortes e enferrujadas vigas iluminadas por tímidas luzes que não sabem se devem estar ligadas ou entregar-se à escuridão. Os meus olhos abrem-se lentamente como se tivessem sido atacados por uma enorme onda de cansaço, e demoro um bocado a ter uma imagem nítida do que me rodeia. Ao olhar melhor, apercebo-me que estou deitado no meio de dois carris de uma linha férrea. Em choque me encontro ao aperceber-me disto pois não me lembro de como vim aqui parar, mas tudo piora quando me levanto. Os meus membros não respondem com a mesma prontidão que lhes é habitual, e rapidamente descubro o porquê. Ao olhar para as minhas mãos cobertas pelas minhas negras luvas, vejo grossas gotas de sangue a pingar dos dedos até ao chão onde, um pouco por todo o meu redor, outros aglomerados de gotas de sangue que sei que é meu, descansam com a poeira. Ao levantar-me sinto, aqui e ali, outros tantos restos desse líquido vital a escorrerem até às extremidades para aos outros se juntarem, e era de esperar que todo o meu corpo gritasse de dor, mas nada sinto. Talvez porque o meu próprio coração está demasiado gelado para deixar qualquer outra parte do corpo sentir o que quer que seja. De qualquer das formas, ao pôr-me finalmente de pé, tomo consciência que alguns ossos e músculos estão fora do seu devido sítio, e se quiser navegar pelo estranho lugar em que me encontro, tenho que tratar deste problema. Começo a esticar cada membro até ter a certeza que tenho a mobilidade que me permite colocar determinado elemento no seu devido lugar, e não tardo a ouvir o eco dos meus ossos a estalar.

            Depois de chegar a um estado razoável, decido interessar-me um pouco mais pelo sítio onde estou. Não parece ser mais que uma velha estação de comboios abandonada, e por mais estranho que possa parecer, as únicas formas de acesso são o pequeno túnel que se abre nos dois lados, pois no sítio onde se devia esperar pelo comboio não há portas, apenas um banco de pedra. Ao olhar para o chão, e ignorando o meu sangue que a seu bel-prazer se espalhou por todo o lado, procuro pistas que me digam o que se passou ali. Vejo várias pegadas, e curiosamente, todas elas descrevem perfeitamente as botas que trago calçadas. Se eu andei por ali sozinho, como é que seria possível ter acordado como acordei?

            Ao ver que não encontro mais nada que me possa esclarecer, decido percorrer a linha férrea até a saída iluminada pelo luar, que seria a que estava atrás de mim quando me estava a levantar. Em poucos passos estou cá fora, e sinto a brisa do luar como se fosse uma tentativa da Natureza para curar as feridas que tão preguiçosamente se esforçam para manifestar qualquer indício de dor. Contudo, a brisa não está só, e sinto passos em corrida à minha direita. Volto-me, e sem qualquer explicação, sinto um vulto a colidir contra mim e a arremessar-me contra a parede mais próxima e para meu espanto, todo o meu corpo grita de dor, uma dor que me cega, uma dor que me imobiliza, uma dor agravada por todas as outras colisões que me atingem, quer nos meus braços e pernas que a todo o custo disponho para proteger as partes vitais, ou nelas mesmas. Ele diz algo, mas algo que não consigo compreender. A força não tarda a desaparecer e à mesma velocidade me torno nada mais que um imóvel saco de pancada que não tarda a ser atirado ao chão poeirento.

            Tento perceber o que se passou, agora que o meu agressor recuou para buscar algo e a dor se ia calando aos poucos, mas a nenhuma conclusão chego, a não ser que se não fizer algo não sobreviverei para contemplar outro dia. Ao tentar levantar-me vejo, uns metros mais à frente, um casal de namorados que decerto aproveitou o estado abandonado daquele lugar para mostrarem os seus afectos. O medo e o terror vê-se nos seus olhares, principalmente nela que se esconde atrás dele e lhe pede para fazer alguma coisa, algo que ele não faz por estar demasiado assustado.

            Ao olhar isto, não consigo evitar um sorriso, mas com ele, algo mais vem. Aquela demonstração de covardia incompetente cria em mim uma dose indescritível de raiva que não tarda a espalhar-se usando as minhas veias como meio de transporte, levando adrenalina com ela, e então começo a sentir o meu corpo a sarar. Ódio e amor fundem-se no meu humano corpo, e mesmo quando me parece que a fonte se esgotou, mais vem e começo a sentir-me prestes a explodir.

            Ele apercebe-se que me estou a levantar, e rapidamente pega no cano de aço que tem mais à mão, correndo o mais depressa possível até mim, e eu, que o espero, recebo-o de braços abertos. O cano de aço corta o ar na minha direcção, e eu paro-o usando apenas a minha mão direita, ironicamente, aquela que é um dos membros mais magoados, mas ainda assim, a ameaça é detida.

            Finalmente tenho o direito de ver quem me lançou tamanha investida. Contudo, um capuz, e um grosso lenço preto cobrem-lhe o rosto. A arma que me tentou atacar encontra-se com a cara do seu mestre que cambaleia surpreendido e desesperado por manter o disfarce intacto. A passo determinado aproximo-me e os papéis agora inverteram-se, pelo que foi uma questão de tempo até que ele parasse de oferecer qualquer resistência, tal como a dor que, apesar de intensa, era ignorada. Tiro-lhe a máscara, e mais uma vez o vejo. Olho-me nos olhos. Não como num espelho, mas sim num rosto distorcido e corroído. Ele tenta sorrir para mostrar a sua indiferença, mas sabe que não o consegue, e finalmente tudo é explicado. Ele é a causa de toda a dor, e por isso é que só a sentia quando ele estava por perto, mas também é a minha parte mais forte.

         Como poderei eu livrar-me de uma parte de mim? E após lançar esta pergunta aos meus pensamentos, uma luz aparece ao fundo do túnel, a luz da dianteira de um comboio que se aproximava. A todo o custo levo-o para o centro dos carris, e eu com ele. O comboio tenta afugentar-nos ruidosamente tal como qualquer um faria a qualquer animal que não quer na sua propriedade. Firme me coloco, embora ele lute para escapar, e ao saber que tal é impossível, pára, e estridentes gargalhadas são produzidas pelas suas cordas vocais. Ignoro-as e olho para o casal cujo terror no seu olhar é agora indescritível, e fecho os meus olhos, aguardando pelo impacto.

            Ao abrir os meus olhos vejo um tecto que me é familiar, aliás, vejo um espaço que me é todo ele familiar. Vejo a minha guitarra a um canto, os meus antigos textos a cobrir uma parede e que envelhecem ao mesmo passo que eu, ou talvez a um passo mais lento. Sem dúvida que estou no meu quarto, e deitado na minha cama, estranhamente, vestindo as mesmas roupas que tinha naquilo que pareceu ser nada mais que um sonho, mas mais limpas e sem quaisquer vestígios de uma única gota de sangue.

            Não tardo a sair da cama, e assim que o faço, a dor surge novamente, e desta vez não encontro feridas que a expliquem.
















Ass: Daniel Teixeira de Carvalho