Ao abrir os meus olhos
vejo um telhado velho suportado por fortes e enferrujadas vigas iluminadas por tímidas
luzes que não sabem se devem estar ligadas ou entregar-se à escuridão. Os meus
olhos abrem-se lentamente como se tivessem sido atacados por uma enorme onda de
cansaço, e demoro um bocado a ter uma imagem nítida do que me rodeia. Ao olhar
melhor, apercebo-me que estou deitado no meio de dois carris de uma linha
férrea. Em choque me encontro ao aperceber-me disto pois não me lembro de como
vim aqui parar, mas tudo piora quando me levanto. Os meus membros não respondem
com a mesma prontidão que lhes é habitual, e rapidamente descubro o porquê. Ao olhar
para as minhas mãos cobertas pelas minhas negras luvas, vejo grossas gotas de
sangue a pingar dos dedos até ao chão onde, um pouco por todo o meu redor,
outros aglomerados de gotas de sangue que sei que é meu, descansam com a
poeira. Ao levantar-me sinto, aqui e ali, outros tantos restos desse líquido
vital a escorrerem até às extremidades para aos outros se juntarem, e era de
esperar que todo o meu corpo gritasse de dor, mas nada sinto. Talvez porque o
meu próprio coração está demasiado gelado para deixar qualquer outra parte do
corpo sentir o que quer que seja. De qualquer das formas, ao pôr-me finalmente
de pé, tomo consciência que alguns ossos e músculos estão fora do seu devido
sítio, e se quiser navegar pelo estranho lugar em que me encontro, tenho que
tratar deste problema. Começo a esticar cada membro até ter a certeza que tenho
a mobilidade que me permite colocar determinado elemento no seu devido lugar, e
não tardo a ouvir o eco dos meus ossos a estalar.
Depois de chegar a um estado razoável, decido
interessar-me um pouco mais pelo sítio onde estou. Não parece ser mais que uma
velha estação de comboios abandonada, e por mais estranho que possa parecer, as
únicas formas de acesso são o pequeno túnel que se abre nos dois lados, pois no
sítio onde se devia esperar pelo comboio não há portas, apenas um banco de
pedra. Ao olhar para o chão, e ignorando o meu sangue que a seu bel-prazer se
espalhou por todo o lado, procuro pistas que me digam o que se passou ali. Vejo
várias pegadas, e curiosamente, todas elas descrevem perfeitamente as botas que
trago calçadas. Se eu andei por ali sozinho, como é que seria possível ter
acordado como acordei?
Ao ver que não encontro mais nada que me possa
esclarecer, decido percorrer a linha férrea até a saída iluminada pelo luar,
que seria a que estava atrás de mim quando me estava a levantar. Em poucos
passos estou cá fora, e sinto a brisa do luar como se fosse uma tentativa da
Natureza para curar as feridas que tão preguiçosamente se esforçam para manifestar
qualquer indício de dor. Contudo, a brisa não está só, e sinto passos em
corrida à minha direita. Volto-me, e sem qualquer explicação, sinto um vulto a
colidir contra mim e a arremessar-me contra a parede mais próxima e para meu
espanto, todo o meu corpo grita de dor, uma dor que me cega, uma dor que me
imobiliza, uma dor agravada por todas as outras colisões que me atingem, quer
nos meus braços e pernas que a todo o custo disponho para proteger as partes
vitais, ou nelas mesmas. Ele diz algo, mas algo que não consigo compreender. A
força não tarda a desaparecer e à mesma velocidade me torno nada mais que um
imóvel saco de pancada que não tarda a ser atirado ao chão poeirento.
Tento perceber o que se passou, agora que o meu agressor
recuou para buscar algo e a dor se ia calando aos poucos, mas a nenhuma
conclusão chego, a não ser que se não fizer algo não sobreviverei para
contemplar outro dia. Ao tentar levantar-me vejo, uns metros mais à frente, um
casal de namorados que decerto aproveitou o estado abandonado daquele lugar
para mostrarem os seus afectos. O medo e o terror vê-se nos seus olhares,
principalmente nela que se esconde atrás dele e lhe pede para fazer alguma
coisa, algo que ele não faz por estar demasiado assustado.
Ao olhar isto, não consigo evitar um sorriso, mas com
ele, algo mais vem. Aquela demonstração de covardia incompetente cria em mim
uma dose indescritível de raiva que não tarda a espalhar-se usando as minhas
veias como meio de transporte, levando adrenalina com ela, e então começo a
sentir o meu corpo a sarar. Ódio e amor fundem-se no meu humano corpo, e mesmo
quando me parece que a fonte se esgotou, mais vem e começo a sentir-me prestes
a explodir.
Ele apercebe-se que me estou a levantar, e rapidamente
pega no cano de aço que tem mais à mão, correndo o mais depressa possível até
mim, e eu, que o espero, recebo-o de braços abertos. O cano de aço corta o ar na
minha direcção, e eu paro-o usando apenas a minha mão direita, ironicamente,
aquela que é um dos membros mais magoados, mas ainda assim, a ameaça é detida.
Finalmente tenho o direito de ver quem me lançou tamanha
investida. Contudo, um capuz, e um grosso lenço preto cobrem-lhe o rosto. A arma
que me tentou atacar encontra-se com a cara do seu mestre que cambaleia
surpreendido e desesperado por manter o disfarce intacto. A passo determinado
aproximo-me e os papéis agora inverteram-se, pelo que foi uma questão de tempo
até que ele parasse de oferecer qualquer resistência, tal como a dor que, apesar
de intensa, era ignorada. Tiro-lhe a máscara, e mais uma vez o vejo. Olho-me
nos olhos. Não como num espelho, mas sim num rosto distorcido e corroído. Ele
tenta sorrir para mostrar a sua indiferença, mas sabe que não o consegue, e
finalmente tudo é explicado. Ele é a causa de toda a dor, e por isso é que só a
sentia quando ele estava por perto, mas também é a minha parte mais forte.
Como poderei eu livrar-me de uma parte de mim? E após
lançar esta pergunta aos meus pensamentos, uma luz aparece ao fundo do túnel, a
luz da dianteira de um comboio que se aproximava. A todo o custo levo-o para o
centro dos carris, e eu com ele. O comboio tenta afugentar-nos ruidosamente tal
como qualquer um faria a qualquer animal que não quer na sua propriedade. Firme
me coloco, embora ele lute para escapar, e ao saber que tal é impossível, pára,
e estridentes gargalhadas são produzidas pelas suas cordas vocais. Ignoro-as e
olho para o casal cujo terror no seu olhar é agora indescritível, e fecho os
meus olhos, aguardando pelo impacto.
Ao abrir os meus olhos vejo um tecto que me é familiar,
aliás, vejo um espaço que me é todo ele familiar. Vejo a minha guitarra a um
canto, os meus antigos textos a cobrir uma parede e que envelhecem ao mesmo
passo que eu, ou talvez a um passo mais lento. Sem dúvida que estou no meu
quarto, e deitado na minha cama, estranhamente, vestindo as mesmas roupas que
tinha naquilo que pareceu ser nada mais que um sonho, mas mais limpas e sem
quaisquer vestígios de uma única gota de sangue.
Não tardo a sair da cama, e assim que o faço, a dor surge
novamente, e desta vez não encontro feridas que a expliquem.
Ass: Daniel Teixeira de Carvalho