segunda-feira, 30 de junho de 2014

          - Ainda te lembras da primeira vez que viemos aqui? – perguntou ela, deitada ao seu lado à beira mar, banhados pelo pôr do Sol.
            - Algo de muito errado teria que se passar comigo para me esquecer – respondeu ele, olhando-a nos seus olhos de um castanho cintilante – foi precisamente aqui que me engasguei todo e fiz figura de parvo enquanto te pedia em namoro.
            Tais palavras fizeram-na soltar uma leve gargalhada, algo que o deixava sempre com um sorriso nos lábios.
            - Não fizeste figuras nenhumas. Eu achei fofo.
            - Então lembramo-nos do mesmo episódio de forma diferente.
            - Será? – perguntou ela – estávamos aqui mesmo, a convite teu por supostamente teres um sítio que querias partilhar comigo, e depois pegaste nas minhas mãos – palavras que se concretizaram, tomando delicadamente as mãos dele e acariciando-as.
            - E depois…
         - E depois – interrompeu-o ela – disseste que me amavas, na forma mais bela que alguém podia alguma vez ouvir.
          - Ao fim de quantas tentativas é que as palavras deixaram de sair aos tropeções? – perguntou ele, rindo-se.
            - Não foi nada assim, tolo – disse ela, retribuindo o gesto – era perfeitamente normal.
           - Dizer à rapariga mais bonita à face da Terra e com quem nunca teria sorte nem mesmo nos meus sonhos que a amo? Sim, é perfeitamente normal engasgar-me.
            Voltaram a rir-se mais uma vez, como duas inocentes crianças no decorrer de uma inocente brincadeira.
            - Mas agora a sério – continuou ele, passando a mão pelo rosto dela – amo-te.
           - Eu sei – disse ela, acariciando essa mesma mão – e espero que saibas que sinto o mesmo por ti, e que te vou amar para todo o sempre.
            - Eu sei, e sou o homem mais sortudo à face da Terra por o saber.
            Olharam-se durante largos segundos enquanto a suave brisa os cobria e a maré se aproximava lentamente dos seus pés descalços. O seus rostos aproximaram-se, e quando os seus lábios estavam prestes a tocar-se, tudo escureceu. A imagem desapareceu, e o silêncio reinou. É mesmo verdade o que toda a gente diz, se bem que com algumas diferenças. Não é a nossa vida inteira que passa à frente dos nossos olhos quando estamos prestes a morrer, mas sim os momentos que fizeram valer a pena vivê-la. E foi esta a última coisa que ele viu antes de ter uma bala a perfurar-lhe o crânio no decorrer de um qualquer ajuste de contas.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

            - Senhora Anders, desmarque todos os meus compromissos para hoje, se não se importar, incluindo os de maior urgência. Creio que o meu trabalho se encontra numa fase que exige toda a minha atenção.
            - Fique descansado, Dr. Patel – respondeu Anders com um sorriso no rosto - nada o incomodará.
            Dr. Patel agradeceu com um sorriso claramente forçado, e seguiu caminho pelo corredor de um branco reluzente. Usou a sua identificação para passar pelas grades de segurança que separavam a entrada do corredor, e depois de a trancar, seguiu em frente, descendo umas escadas e desaparecendo de vista.
            - Nunca conheci ninguém tão antipático – pensou Anders, dirigindo as suas atenções para o seu computador.
            Para além de o achar antipático, também o achava estranho, não só a ele mas também a todo aquele lugar. Trabalhava lá nem há um mês e estava longe de saber o que é que os médicos realmente faziam. Ela nunca via doentes a entrar, mas, ainda assim, já não era a primeira vez que ouvia os médicos a comentar a condição de um determinado paciente e até mesmo de ouvir gritos vindos do andar de baixo… e é claro, não só ela não estava autorizada a ver o que se passava, como também seria impensável fazer perguntas a quem quer que seja.
            Apesar de tudo, o trabalho era bem pago e não lhe era pedido para fazer muito, apenas tratar de agendar reuniões e de manter os doutores actualizados das mesmas. De resto não havia muito mais a acrescentar. Ao fim do dia, era isso que lhe interessava, e não podia estar mais grata por ter conseguido arranjar um trabalho minimamente decente ao fim de tanto tempo, e tencionava manter as coisas assim. Contudo, a sua percepção estava prestes a mudar.
            Um homem abriu a porta de vidro e seguiu na sua direcção. Usava um fato preto e o seu longo cabelo da mesma cor repousava sobre os seus ombros.
            - Boa noite – disse ele, num tom quase sem expressão, tal como o seu rosto – gostaria de falar com o Dr. Patel.
            - Boa noite – respondeu Anders – lamento, mas o Dr. Patel não quer ser incomodado.
            - Diga-lhe que é urgente.
            - Também me pediu para não ser incomodado mesmo em casos de urgência. Deseja marcar a sua reunião para outra data?
            Assim que ela levantou o olhar do monitor em busca de uma resposta, nada mais a esperava a não ser um olhar fulminante.
            - Vou dar-lhe a opção de me deixar passar a bem. Basta abrir a porta e evitaremos todos e quaisquer problemas.
            - Lamento, mas não posso fazer isso – disse ela, enquanto, discretamente, tentava activar o alarme silencioso que tinha debaixo da sua secretária, mas, por mais que tentasse, a sua mão não conseguia ultrapassar os poucos centímetros que a separavam do seu objectivo, como se uma parede invisível tive surgido do nada.
            - Isso está longe de ser uma boa ideia – disse ele.
            Anders começou a sentir-se a ser levantada, mas ninguém a segurava. Foi subindo no ar lentamente, debaixo do olhar inexpressivo daquele estranho homem, até que parou a poucos centímetros do tecto. Assustada, tentou gritar, mas nem um som saiu da sua boca. Restava-lhe apenas esperar o pior.
            Do nada, a porta da entrada abriu-se com um estrondo, e dois seguranças entraram de armas em punho.
            - Ponha-a no chão ou disparamos! – gritaram eles, mas sem efeito.
            O homem continuava a olhar para Anders, como se estivesse a tentar encontrar algo de interessante nela, e depois de mais um aviso, abriram fogo sobre ele. Todas as balas encontraram o alvo, aliás, não só o encontraram como o trespassaram, mas assim que abandonavam o seu corpo, já não eram uma qualquer liga metálica, mas sim cinzas.
            Lentamente, ele virou o seu rosto inexpressivo na direcção dos seguranças. Assim que se voltou paras os confrontar, Anders foi atirada violentamente contra a parede à sua esquerda, batendo com a cabeça, e caindo no chão já inconsciente.
            Uma nova rajada de balas foi disparada, obtendo um resultado exactamente igual ao anterior. Calmamente, ele tirou as mãos dos bolsos, e a esta altura, uma estranha neblina preta começava a emergir do seu corpo. Erguendo as suas mãos, também os seguranças eram elevados no ar. Tentaram usar as suas armas mais uma vez, mas agora nem premir o gatilho conseguiam. Do nada, elas explodiram, rebentando-lhes as mãos no processo, e enchendo aquela pacata divisão com assustadores gritos de dor, gritos esses que não paravam, apenas intensificavam. As suas vestes brancas começavam a parecer ensanguentadas, e sangue começava a escorre por todo o seu corpo, apesar de não haver qualquer tipo de feridas à vista, à excepção das mãos que explodiram. Os gritos acabaram por atingir o seu auge, e cessaram com a explosão daqueles dois homens, pintando as paredes brancas de vermelho, e cobrindo-as com pedaços de órgãos e ossos.
            Admirar o se trabalho não estava, nem de perto, nos seus planos. Voltou-se na direcção da porta que tão pacificamente queria atravessar, e avançou até ela, dobrando cada vez mais as suas barras de aço maciço a cada passo que dava, acabando por a arrancar das paredes que a seguravam assim que a alcançou.     
            As luzes agora cintilavam inquietas, e a estranha neblina que emanava do corpo daquele estranho homem tornava-se cada vez mais densa. Enquanto avançava em direcção às escadas, apercebeu-se de um médico que se aproximava vindo do corredor à sua direita, distraído ao olhar para a prancheta que tinha nas mãos, distracção essa que cessou com a escuridão intermitente. Olhou em frente, e tudo o que viu, quando o conseguia fazer, era uma pequena nuvem negra a pairar no chão, e que calmamente avançava na sua direcção. Rapidamente tentou atribuir uma explicação lógica àquele fenómeno, mas por mais que se esforçasse, não conseguia perceber como tal era possível. A temperatura e a humidade não tinham mudado e era impossível que um simples problema eléctrico culminasse em tal acontecimento. Imerso nestes pensamentos, o médico não se apercebeu que a calma nuvem tinha avançado pelas suas pernas, e quando essa realização desabou sobre ele, já era tarde demais. Abriu a boca para gritar, mas qualquer som que viesse a soltar foi abafado. Olhou para baixo e viu um braço a emergir do seu peito, coberto de sangue, sangue esse que pingava sobre o chão imaculadamente branco. A imagem começou a ficar desfocada e escura, o silêncio tornou-se absoluto, e já não foi capaz de se ver a cair numa poça do seu próprio sangue.
            O homem passou a mão sobre o seu braço esquerdo três vezes numa tentativa de se limpar, mas em vão, muito dificilmente iria sair aquele tipo de nódoa. Indiferente, seguiu calmamente pelas escadas abaixo com as mãos nos bolsos e com a neblina a seguir atrás dele. Esperava-o outro corredor, com o triplo do tamanho do anterior e com ambos os lados cobertos por celas decadentes. Continuou a passo calmo, ignorando os murmúrios, os actos de auto-mutilação, as violações e os corpos apodrecidos que viviam naquelas celas. Estava ali por uma única razão, e ela estava por detrás daquela porta de aço.
            Não parou diante dela. Pousou as suas mãos sobre ela e abriu-a calmamente, passando a ouvir nitidamente os gritos de alguém que tinha a sua cabeça a ser furada por uma broca eléctrica. Dr. Patel desligou a broca e olhou em frente:
            - Não sabes ser discreto, pois não?
            - Não passam de detalhes. A tua morte é a única coisa que me interessa verdadeiramente, os restantes não passam de pequenas distracções.
            - Eu dou-te isso e é assim que me agradeces?
            - Parece-me adequado. E faz mais sentido morreres às mãos daquilo que criaste do que eu enviar-te um postal com um agradecimento qualquer.
            - E o que te faz pensar que o vais conseguir fazer?
            Ele não disse nada, nem precisava de o fazer, bastou-lhe sorrir.
            Naquele preciso momento, todo o edifício começou a tremer, e o olhar de desprezo de Dr. Patel desapareceu, sendo substituído por puro medo:
            - O que estás a fazer? – perguntou.
            Como resposta teve apenas um sorriso mais largo, e, subitamente, sentiu algo a agarrar-lhe os braços e as pernas, puxando-o e deixando-o suspenso no ar. Olhou em volta aterrorizado, mas nada via, apenas sentia.
            - O que estás a fazer?!
            - Não é óbvio? Estou a matar-te.
            Dr. Patel continuou a olhar em volta, desesperadamente, à procura de uma saída que ele sabia ser inexistente, e por isso, decidiu terminar como achou melhor:
            - Podes matar-me agora mesmo, mas podes ter a certeza que isto não vai ficar assim!
            - Sim, eu conheço os teus amigos e sei que eles estão a caminho… mas passemos ao que realmente interessa, fartei-me demasiado depressa de te ouvir falar… agora quero ouvir-te gritar.
            Lentamente, a respiração ofegante de Dr. Patel veio a transformar-se num grito. Sangue começava a manchar as suas roupas e a arranjar caminho para se juntar ao chão. O grito foi intensificando-se gradualmente enquanto a pele e a carne eram rasgados e o sangue escarlate começava a escorrer livremente. Finalmente atingiu o ponto alto, um grito ensurdecedor, e logo de seguida, silenciado, por ter os membros do seu corpo arrancados e despedaçados, atirados violentamente contra as paredes daquela estranha divisão. A cabeça arranjou maneira de rebolar até aos pés do assassino, que a tomou de bom grado, segurando-a com a mão direita e rindo-se na sua cara horrorizada.
            - Preparem-se para disparar ao meu sinal!
            O homem voltou-se para a outra ponta do corredor, de onde tinham vindo essas palavras, e de onde agora apareciam dezenas de homens com equipamento a fazer lembrar uma qualquer equipa de uma força de intervenção, e uma que ele não conseguia reconhecer de lado nenhum.
            Sorriu enquanto atirava a cabeça de Dr. Patel ao chão e lhes lançava uma arrepiante gargalhada, ao mesmo tempo que a neblina escurecia e o cobria.
            - ABRIR FOGO! – berrou um deles, berro esse que foi abafado por aquela gargalhada e pela explosão negra que avançou na sua direcção, e tão intensa que destruiu os principais suportes do edifício, fazendo-o desabar sobre ele mesmo.
            Enquanto o Sol se punha e se ouviam carros a aproximar, aquela neblina via-se a sair dos escombros, e foi só uma questão de tempo para que aquele homem voltasse a aparecer, estalando os nós dos dedos, e ao olhar para o horizonte disse, sem conseguir resistir em sorrir:

            - Que os jogos comecem.