Num
dia em que o Sol procurava insistentemente penetrar a barreira de nuvens que
bloqueava o seu caloroso abraço, um homem sentava-se a escrever. Longos eram os
anos que marcavam a sua face enrugada, o seu cabelo branco ao nível dos ombros
e a sua barba grisalha. Sentava-se numa secretária que também já muitos anos
viu passar e certamente muitas histórias tinha para contar. Diante de si, uma
humilde janela com vista privilegiada para a entrada da sua casa.
Apesar do fervor com que escrevia,
conseguiu aperceber-se do carro cinzento que parou à sua porta, e do homem que
dele saiu. Cabelo negro, curto, talvez com pouco mais de trinta anos de idade,
usando um simples casaco de cabedal e umas calças de ganga de um azul-escuro, avançou a passo normal.
Vendo isto, o homem tratou de se
levantar, descendo as escadas do seu escritório até ao andar de baixo, já com o
som de batidas na porta. Apesar da idade, mexia-se bem, e não tardou a abri-la
sem problemas.
- Pai! – exclamou o visitante,
abrindo os braços num abraço.
- Como estás, filho? – perguntou o
homem, recebendo-o nos seus braços.
- Estou bem, e tu?
- Sim, estou bem.
- Posso?
- Sim, claro – respondeu o homem,
afastando-se para deixar o filho entrar.
- A casa está com bom aspecto. E tu
também.
- Obrigado. São as vantagens de ter
uma casa grande, há sempre algo para fazer.
- Gosto de te ver assim.
Fechando a porta, o homem avançou
para a cozinha:
- Queres tomar alguma coisa? Chá?
Café?
- Não, obrigado, eu estou bem.
- Muito bem – disse ele, pegando no
reservatório parcialmente cheio da máquina de café e lançando-lhe um sorriso –
caso mudes de ideias, podes servir-te à vontade.
O filho retribuiu o sorriso. Olhando
para as escadas e para a fraca luz natural que as cobria, continuou:
- Estavas no escritório?
- Sim – respondeu o homem,
aproximando-se das escadas – estava a escrever umas coisas.
- Algo em especial?
- Nada demais. Apenas algumas
ideias.
- Importas-te que dê uma olhadela?
- Claro que não.
Os dois subiram e enquanto o faziam,
o homem perguntou:
- E a Susana e os miúdos, como é que
estão?
- Estão bem. Os rapazes estão um
pouco nervosos agora com a época dos exames e a Susana tem andado um pouco
sobrecarregada com o trabalho, mas fora isso estamos todos bem.
- Devias trazê-los cá um dia destes,
depois de as coisas acalmarem, claro. Há espaço para todos e está-se
particularmente bem nas traseiras nesta altura do ano.
- Sim, assim que tudo estiver calmo
trago-os num fim-de-semana.
- Assim espero.
De volta ao escritório, o homem
tomou o seu lugar à secretária, dando uma vista de olhos rápida ao último
parágrafo que escreveu. O filho estudou a secretária, parando o seu olhar sobre
o generoso aglomerado de folhas cuidadosamente amontoado do lado esquerdo.
Continuava a ser difícil para ele perceber a letra do seu pai, mas havia uma
palavra, um nome, que ele reconheceria em qualquer lugar.
- É sobre ela, não é?
O homem suspirou:
- Talvez.
- Pai, eu acho uma excelente ideia
fazeres o que estás a fazer, mas não achas que estás demasiado preso a esta
memória? Não me interpretes mal, eu tenho tantas saudades da mãe como tu, mas
quantas histórias é que tu já escreveste sobre ela?
O homem manteve-se em silêncio,
passando o seu olhar da folha que tinha diante de si para todas as outras que já tinha
escrito.
- Eu cheguei a um ponto na minha
vida em que o mundo é um lugar estranho. A cada dia que passa sinto-me mais
afastado dele. Sinto que há cada vez menos a fazer.
- Pai, por favor…
- Esta memória, isto – interrompeu o
homem, apontando para as várias páginas – nada mais são que uma marca que eu
quero deixar, não de mim, mas dela. Todo o tempo foi pouco, e só queria ter
feito mais.
- Todos nós queríamos – disse o
filho, pousando a mão no ombro do pai – mas temos que seguir em frente. O
passado já passou, e ela de certeza que não te quer ver assim.
Tomando a mão do seu filho,
acariciou-a e continuou:
- És um bom rapaz, um bom pai, e um
bom filho – sorriu, olhando-o nos olhos – mas o passado está sempre lá para mim
e não posso simplesmente esquecê-lo.
- Ninguém está a falar em esquecer,
mas sim em não viver nele.
- Não há muito mais para mim aqui.
Tu estás crescido e farás um bom trabalho com os teus filhos. Esta casa deixará
de me ter a mim para cuidar dela e estas páginas deixaram de ter a minha mão
nelas.
- Não digas essas coisas.
O homem levantou-se, e manteve o
sorriso:
- Não me interpretes mal. Não quero
que fiques a pensar em fatalismos, mas da mesma maneira que eu tenho que
aceitar o passado, também tu tens que aceitar o futuro. Será que consegues?
O filho olhou-o nos olhos e quase a
soluçar lançou-se num novo abraço:
- Não digas uma coisa dessas! Tu
ainda vais ficar cá durante muito tempo! Ainda vais ver os teus netos a
tornarem-se homens!
O homem afagou-lhe as costas e o
cabelo como muitas vezes tinha feito:
- Sim, eu quero ver isso tudo, e
gosto de pensar que irei.
- Claro que vais… amanhã passamos cá
todos para te fazer uma visita.
- Parece-me uma óptima ideia.
Quase quebrando o abraço, voltaram a
trocar olhares. O filho quase em lágrimas e o pai o confortava com o seu
caloroso olhar.
- Amo-te, pai.
- Também te amo, filho.
E com isto despediram-se. O pai
acompanhou o filho à porta. Ambos mantiveram-se em silêncio, mas aquela mão nas
costas dizia o suficiente.
De regresso ao seu escritório
conseguiu ainda ver o seu filho a acenar-lhe, algo que ele retribuiu. Ainda o
viu a partir no carro, mas assim que o viu a dobrar a esquina, sentou-se, e,
calmamente tomou a caneta com que estava a escrever. Não havia pressas.
Faltava-lhe apenas escrever o fim.