domingo, 28 de janeiro de 2018

Saudade

           Num dia em que o Sol procurava insistentemente penetrar a barreira de nuvens que bloqueava o seu caloroso abraço, um homem sentava-se a escrever. Longos eram os anos que marcavam a sua face enrugada, o seu cabelo branco ao nível dos ombros e a sua barba grisalha. Sentava-se numa secretária que também já muitos anos viu passar e certamente muitas histórias tinha para contar. Diante de si, uma humilde janela com vista privilegiada para a entrada da sua casa.

            Apesar do fervor com que escrevia, conseguiu aperceber-se do carro cinzento que parou à sua porta, e do homem que dele saiu. Cabelo negro, curto, talvez com pouco mais de trinta anos de idade, usando um simples casaco de cabedal e umas calças de ganga de um azul-escuro, avançou a passo normal.

            Vendo isto, o homem tratou de se levantar, descendo as escadas do seu escritório até ao andar de baixo, já com o som de batidas na porta. Apesar da idade, mexia-se bem, e não tardou a abri-la sem problemas.

            - Pai! – exclamou o visitante, abrindo os braços num abraço.

            - Como estás, filho? – perguntou o homem, recebendo-o nos seus braços.

            - Estou bem, e tu?

            - Sim, estou bem.

            - Posso?

            - Sim, claro – respondeu o homem, afastando-se para deixar o filho entrar.

            - A casa está com bom aspecto. E tu também.

            - Obrigado. São as vantagens de ter uma casa grande, há sempre algo para fazer.

            - Gosto de te ver assim.

            Fechando a porta, o homem avançou para a cozinha:

            - Queres tomar alguma coisa? Chá? Café?

            - Não, obrigado, eu estou bem.

            - Muito bem – disse ele, pegando no reservatório parcialmente cheio da máquina de café e lançando-lhe um sorriso – caso mudes de ideias, podes servir-te à vontade.

            O filho retribuiu o sorriso. Olhando para as escadas e para a fraca luz natural que as cobria, continuou:

            - Estavas no escritório?

            - Sim – respondeu o homem, aproximando-se das escadas – estava a escrever umas coisas.

            - Algo em especial?

            - Nada demais. Apenas algumas ideias.

            - Importas-te que dê uma olhadela?

            - Claro que não.

            Os dois subiram e enquanto o faziam, o homem perguntou:

            - E a Susana e os miúdos, como é que estão?

            - Estão bem. Os rapazes estão um pouco nervosos agora com a época dos exames e a Susana tem andado um pouco sobrecarregada com o trabalho, mas fora isso estamos todos bem.

            - Devias trazê-los cá um dia destes, depois de as coisas acalmarem, claro. Há espaço para todos e está-se particularmente bem nas traseiras nesta altura do ano.

            - Sim, assim que tudo estiver calmo trago-os num fim-de-semana.

            - Assim espero.

            De volta ao escritório, o homem tomou o seu lugar à secretária, dando uma vista de olhos rápida ao último parágrafo que escreveu. O filho estudou a secretária, parando o seu olhar sobre o generoso aglomerado de folhas cuidadosamente amontoado do lado esquerdo. Continuava a ser difícil para ele perceber a letra do seu pai, mas havia uma palavra, um nome, que ele reconheceria em qualquer lugar.

            - É sobre ela, não é?

            O homem suspirou:

            - Talvez.

            - Pai, eu acho uma excelente ideia fazeres o que estás a fazer, mas não achas que estás demasiado preso a esta memória? Não me interpretes mal, eu tenho tantas saudades da mãe como tu, mas quantas histórias é que tu já escreveste sobre ela?

            O homem manteve-se em silêncio, passando o seu olhar da folha que tinha diante de si para todas as outras que já tinha escrito.

            - Eu cheguei a um ponto na minha vida em que o mundo é um lugar estranho. A cada dia que passa sinto-me mais afastado dele. Sinto que há cada vez menos a fazer.

            - Pai, por favor…

            - Esta memória, isto – interrompeu o homem, apontando para as várias páginas – nada mais são que uma marca que eu quero deixar, não de mim, mas dela. Todo o tempo foi pouco, e só queria ter feito mais.

            - Todos nós queríamos – disse o filho, pousando a mão no ombro do pai – mas temos que seguir em frente. O passado já passou, e ela de certeza que não te quer ver assim.

            Tomando a mão do seu filho, acariciou-a e continuou:

            - És um bom rapaz, um bom pai, e um bom filho – sorriu, olhando-o nos olhos – mas o passado está sempre lá para mim e não posso simplesmente esquecê-lo.

            - Ninguém está a falar em esquecer, mas sim em não viver nele.

            - Não há muito mais para mim aqui. Tu estás crescido e farás um bom trabalho com os teus filhos. Esta casa deixará de me ter a mim para cuidar dela e estas páginas deixaram de ter a minha mão nelas.

            - Não digas essas coisas.

            O homem levantou-se, e manteve o sorriso:

            - Não me interpretes mal. Não quero que fiques a pensar em fatalismos, mas da mesma maneira que eu tenho que aceitar o passado, também tu tens que aceitar o futuro. Será que consegues?

            O filho olhou-o nos olhos e quase a soluçar lançou-se num novo abraço:

            - Não digas uma coisa dessas! Tu ainda vais ficar cá durante muito tempo! Ainda vais ver os teus netos a tornarem-se homens!

            O homem afagou-lhe as costas e o cabelo como muitas vezes tinha feito:

            - Sim, eu quero ver isso tudo, e gosto de pensar que irei.

            - Claro que vais… amanhã passamos cá todos para te fazer uma visita.

            - Parece-me uma óptima ideia.

            Quase quebrando o abraço, voltaram a trocar olhares. O filho quase em lágrimas e o pai o confortava com o seu caloroso olhar.

            - Amo-te, pai.

            - Também te amo, filho.

            E com isto despediram-se. O pai acompanhou o filho à porta. Ambos mantiveram-se em silêncio, mas aquela mão nas costas dizia o suficiente.

            De regresso ao seu escritório conseguiu ainda ver o seu filho a acenar-lhe, algo que ele retribuiu. Ainda o viu a partir no carro, mas assim que o viu a dobrar a esquina, sentou-se, e, calmamente tomou a caneta com que estava a escrever. Não havia pressas. Faltava-lhe apenas escrever o fim.

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