quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Projecções Inconscientes

             Aconteceu novamente. Do nada, a imagem surgiu. Não a imagem, mas sim uma sombra dela. Parte de um sorriso, parte de algo que se calhar nunca existiu, partidas de uma mente que na verdade tem vontade própria.

            Nas profundezas daquilo que me é desconhecido, planos têm lugar sem o meu conhecimento e, consequentemente, sem o meu controlo. O resultado é esta junção de projecções, de retratos de um passado cuja razão de existência se prende somente a memórias que não passam disso, mas que, por vontade própria ou por forças externas que me são desconhecidas, procuram ser algo mais.

            Contornos de um corpo que não existe, palavras que nunca foram proferidas, maquinações da total ausência de controlo, pois o subconsciente ainda é inacessível. E, por isso, elas surgem, uma e outra vez.

            Curioso problema este que tantos claramente afecta. O que será melhor? Viver no passado através de memórias que vão sendo livremente moldadas, ou ignorá-las perante a incerteza do futuro?

            O comum dos mortais diz que não se pode fugir do passado… mas aqui alguém está realmente a fugir?

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Objectivamente objectivo

         Muito se pode dizer quanto ao que faz de nós realmente humanos. Debativelmente, a opção mais fácil é a capacidade de sentir, não numa perspectiva fisiológica, como sentir frio ou calor, mas sim ao nível das emoções. Procurando desenvolver, e assumindo isto como verdadeiro, a capacidade de sentir confere-nos humanidade, mas a que custo?

            A nossa própria existência encontra-se marcada por episódios onde essa capacidade de sentir mostrou ser algo verdadeiramente atroz. Acontece todos os dias, bastando para isso que alguém faça mal a outra pessoa (seja de que forma for) porque isso lhe vai permitir sentir-se bem ou até mesmo realizado.

            Ao removermos o filtro que as emoções realmente são, apercebemo-nos de que elas são, não um atenuante, mas sim um bloqueador. No caso concreto (variando, obviamente) surgem apenas como uma distracção, algo que surge, desviando o interesse e o foco do problema ou questão que se encontra em vias de ser resolvido. Um bom exemplo disto pode ser ilustrado na forma de um problema ético/moral: encontras-te no centro de dois edifícios, e ambos estão armadilhados com explosivos. No da tua esquerda está a pessoa que mais amas à face da Terra, e no da direita tens uma equipa de médicos. Quem decides salvar?

            Há duas interpretações distintas deste mesmo problema, e, obviamente, aquela que se encontra directamente relacionada com a questão das emoções consiste no salvamento da pessoa que se ama, priorizando-se, assim, as vontades e desejos próprios em vez do bem comum/em longo prazo. A outra face da moeda implica uma interpretação, quiçá mais moral, ou simplesmente mais objectiva. Enquanto que salvar a pessoa que se ama seria benéfico essencialmente para nós, salvar os médicos resultaria num bem maior onde outros para além de nós seriam incluídos.

            Serão as emoções realmente importantes? Tal como este mesmo tópico, é debatível. E o mesmo pode dizer-se do pensamento objectivo? Se calhar não. A partir do momento em que ignoramos este filtro e encaramos as demais situações conforme elas são, é-nos possível arranjar uma solução em nada egoísta. É claro que para tal é necessário que a própria personalidade esteja construída nesse sentido, mas, de qualquer das formas, conseguir dar este grande passo já é bastante positivo.

            Poucos são os que conseguem fazer isto, observar e não ver a natureza de tudo. Perceber como tudo funciona, quem afecta e como. Perante isto, é apenas uma maior pena ver que mesmo esses poucos caem na tentação de agir por benefício próprio, porque, verdade seja dita, tal faz parte da nossa natureza. Sempre fez, e sempre fará.

            Irónico que aquilo que nos dá a nossa humanidade é o mesmo que a tira.

domingo, 13 de agosto de 2017

Nua e Crua

           O mundo em que vivemos é decadente e asqueroso, repleto de seres que agem somente com os seus interesses em vista enquanto criam a ilusão de que o fazem por um bem maior. Nem sempre foi assim, ou melhor, nem sempre aparentou ser assim. O mundo não tem culpa, aqueles que não se sabem conter face à posse de poder é que têm.

            A complexidade de toda a farsa é o grande segredo de tudo. Não é à toa que se diz que nunca se deve subestimar o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos, e tal é sempre tido em consideração. Basta que esta constante se mantenha na equação para que tudo seja facilmente manipulável e nenhuma pergunta ou constatação inconveniente seja feita. Nem todos conseguem aperceber-se disso, não só por causa do esforço tremendo para o impedir, mas também do estado de espírito necessário para ver para além da mentira.

            Quando se está durante um longo período de tempo num túnel sem fim onde a luz no seu fundo está sempre à mesma distância, torna-se fácil observar e estudar as pequenas teias que abrangem tudo e todos, e que os movem ao bel-prazer de quem as puxa.

            Não sinto qualquer tipo de prazer em constatar este tipo de realidade, muito pelo contrário. Tanto quanto sou levado a crer, ainda estou nesse mesmo túnel, apenas mais perto da luz, o que quer que seja que isso represente. A verdade é que a realidade é esta. Nua e crua. A mão que é estendida, quando chegar o momento apropriado, aparecerá para pedir algo em troca. A palavra que foi prometida, ao ver que afinal não é vantajoso, não regressará para ser cumprida. Ao fim e ao cabo, a podridão continuará a arrastar-se, apenas disfarçando-se nas mais esbeltas formas.

            A ignorância não deixa de ser uma bênção, e não nego o meu ocasional interesse em trocar de perspectivas com outros, não só para que eles também se apercebam, como também para ver algo mais que não isto. Mas recuso-me a ceder a esta tentação, não por eles pois não me dizem nada, mas sim porque as profundezas da minha mente não são um bom sítio para se estar… mas, para aqueles que agora conseguem ver, o verdadeiro desafio fica em cima da mesa.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Por entre os vivos

       Lembro-me da primeira vez que morri. Lembro-me de sentir os problemas que me atormentavam a transformarem-se em nada. Lembro-me de sentir o vazio a tomar-me até que eu me tornei parte dele.

            Naquele único momento, naquela transição, não havia nada a não ser paz e tranquilidade. Nada passava pela minha mente. Apenas estava ali, a fluir, a navegar algures.

            Nas profundezas da obscuridade, senti algo a chamar-me. Até aos dias de hoje, continuo sem saber o que esse algo realmente era. Apenas que disse o meu nome e que, quando dei por mim, o nada agora era algo, ar entrava e saía dos meus pulmões e sangue corria novamente pelo meu corpo. Estava novamente vivo, mas havia algo de diferente. O chamamento continuava presente, e nele um propósito.

            O período de aceitação não foi fácil. Dei por mim a regressar àquele estado mais que uma vez, mas independentemente de como o fazia, vida era-me sempre devolvida. O que quer que seja que me obrigava a voltar, não parecia enfuriar-se com este meu comportamento. Sentia o mesmo que sentira da primeira vez, um chamamento sereno que queria apenas ver-se cumprido. Dei por mim a ceder e a aceitar, pois mais nada podia fazer.

            Quanto tempo passou? Quantos ajudei na transição? São duas das perguntas às quais não tenho resposta. O tempo deixa de ter qualquer interesse quando ele deixa de fazer parte das nossas vidas.

            Ainda me lembro da primeira vez que morri. O resto? É história.

Aqueles que cavam

           A noite estava calma, tal como o ambiente do bar. Para além de alguns bêbados inanimados em cima de algumas mesas ou do balcão, restavam apenas o barman, três cavalheiros a jogar poker e o seu dealer. Várias já tinham sido as mãos trocadas entre eles, tal como os avultados montes de dinheiro, que agora já tinham visto o mesmo dono mais que uma vez.

            O barman limpava o balcão com desinteresse absoluto ao que se passava, focando-se apenas na monotonia da sua tarefa, não tendo quaisquer problemas em desfazer-se de quaisquer pesos embriagados que o obstruíam. Pesado era o som do embate assim que caíam no chão, mas, ainda assim, incapaz de os acordar, soltando apenas um sonoro ronco.

            O tempo passava, tal como a monotonia, apenas quebrada pelas ocasionais pancadas na mesa, as habituais deixas que o jogo de poker exige, embriagados ressonares e o som de um pano húmido a ser passado por um balcão de madeira gasta e copos de vidro sem remedeio algum.

            As horas passavam, contadas pelos cigarros que o dealer fumava. Ele fixava as cartas e os jogadores com um olhar vazio, baralhando e dando as cartas de forma tão natural e mecânica como se de respirar se tratasse.

            O tempo passava e o dinheiro acumulava-se na mesa, o que significava que se esvaziava no bolso. Quando começou a ficar escaço, o desespero começou a tomar lugar e os ânimos exaltaram-se. Um gesto de batota que se ficou por saber se realmente aconteceu ou não fez com que todos se levantassem e, ora por sorte ou por azar, tomaram os seus revólveres em simultâneo e premiram os gatilhos. Os três caíram mortos.

            O estrondoso espalhafato chamou a atenção do barman e de alguns dos restantes clientes que, ora retomavam o seu estado quase comatoso, ou tentavam sair do bar tal como podiam. O dealer contemplou a cena com o seu olhar vazio, e apagando o seu cigarro na mesa, levantou-se. Tomou a pá imunda que tinha deixado encostada atrás de si, e tomou um dos corpos.

            - Trabalhar a esta hora? – perguntou o barman.

            - É melhor enquanto os corpos estiverem frescos.

            - Não questiono.

            Assim que o dealer se viu diante da porta, ouviu novamente:

            - Pode-se quebrar este ciclo?

            O dealer parou, pousou a pá ao seu lado e respondeu:

            - Há dois tipos de pessoas, as com armas, e as que cavam. As que têm armas só se apercebem do que têm nas mãos quando já é tarde demais. Resta aos que cavam deixar uma mensagem para os que cá ficam. Pode ser quebrado? Não me parece. Haverá sempre alguém com uma arma e alguém para o enterrar… Dá-lhe uma olhadela neles. Eu já volto.

            E saindo do bar, deixou-se levar pelo abraço da escuridão.

Quando se observa o abismo

         Olha-me nos olhos e diz-me o que vês. Vá, diz-me. Estou à espera. Sempre disseram que os olhos são a janela para alma, por isso pergunto-te, mais uma vez, o que é que vês? Vês alguma alma? Vês a sua ausência? Algo a tomar o seu lugar? Se calhar esta última. Vem, deixa-me mostrar-te. Olha, e deslumbra-te!

            Vês todos estes seres distorcidos? Vês as suas figuras a torcerem-se sobre elas próprias, a gritar com as cordas vocais que já lá não estão? Bela a música que cantam! Uma inspiração e uma verdadeira elevação do espírito! Que mais temos? Que mais vês? Olha além, os contornos desfigurados de pessoas reais. Mas atenção que não são estas projecções que o são. Não. Elas são-no mesmo assim lá fora. Aqui elas são simplesmente retratadas tal como são, expostas em todo o seu horroroso e nojento esplendor! Mas anda que isto pouco ou nada interessa. Afinal de contas, só agora é que estamos a começar!

            Olha aqui em baixo. Olha bem. Parece um espelho, não parece. Mas não olhes muito tempo. Podes perder-te no outro lado, e sabe-se lá o que seria de ti! Olha agora ali. Vês todos aqueles ligamentos? Todas aquelas saturações ainda a escorrer este sumo vital. Olha de mais perto. Sim, consigo ver a realização nos teus olhos. Os pontos ainda estão frescos. Sim, todos eles, e sim, todos eles têm longos anos. Depois de algum tempo, apercebes-te que não vale a pena curar o que quer que seja e que é melhor deixar tudo como está! Mas anda, há muito mais para ver. Mas não mexas em nada! Rasga isto outra vez e estarás em apuros!

            Estamos mais perto agora. Consegues ouvir os gritos? Estes são novos. Enquanto que os outros eram mais reais, estes não são tanto. Eles vêem da imaginação, da vontade total e absoluta de fazer com que os soltem! E porque é que estão aqui? Porque a força de vontade para os conter é demasiado grande! Torna-se mais debilitada por vezes, mas aguenta-se… até ao dia em que não o fará. Ah, como os imagino a soltar guturais gritos enquanto a pele é rasgada, a carne cortada e os ossos partidos. A espera por algo tão grandioso mata-me!

            Ora cá estamos, no centro de tudo! Nas profundezas da mente de onde tudo isto é fruto! Não é belo? Não é magnífico? Não te dá vontade de simplesmente largares tudo e te perderes aqui?

            Diz-me, o que é que vês? Diz-me… ou será que terei de fazer de ti um exemplo?