segunda-feira, 30 de junho de 2014

          - Ainda te lembras da primeira vez que viemos aqui? – perguntou ela, deitada ao seu lado à beira mar, banhados pelo pôr do Sol.
            - Algo de muito errado teria que se passar comigo para me esquecer – respondeu ele, olhando-a nos seus olhos de um castanho cintilante – foi precisamente aqui que me engasguei todo e fiz figura de parvo enquanto te pedia em namoro.
            Tais palavras fizeram-na soltar uma leve gargalhada, algo que o deixava sempre com um sorriso nos lábios.
            - Não fizeste figuras nenhumas. Eu achei fofo.
            - Então lembramo-nos do mesmo episódio de forma diferente.
            - Será? – perguntou ela – estávamos aqui mesmo, a convite teu por supostamente teres um sítio que querias partilhar comigo, e depois pegaste nas minhas mãos – palavras que se concretizaram, tomando delicadamente as mãos dele e acariciando-as.
            - E depois…
         - E depois – interrompeu-o ela – disseste que me amavas, na forma mais bela que alguém podia alguma vez ouvir.
          - Ao fim de quantas tentativas é que as palavras deixaram de sair aos tropeções? – perguntou ele, rindo-se.
            - Não foi nada assim, tolo – disse ela, retribuindo o gesto – era perfeitamente normal.
           - Dizer à rapariga mais bonita à face da Terra e com quem nunca teria sorte nem mesmo nos meus sonhos que a amo? Sim, é perfeitamente normal engasgar-me.
            Voltaram a rir-se mais uma vez, como duas inocentes crianças no decorrer de uma inocente brincadeira.
            - Mas agora a sério – continuou ele, passando a mão pelo rosto dela – amo-te.
           - Eu sei – disse ela, acariciando essa mesma mão – e espero que saibas que sinto o mesmo por ti, e que te vou amar para todo o sempre.
            - Eu sei, e sou o homem mais sortudo à face da Terra por o saber.
            Olharam-se durante largos segundos enquanto a suave brisa os cobria e a maré se aproximava lentamente dos seus pés descalços. O seus rostos aproximaram-se, e quando os seus lábios estavam prestes a tocar-se, tudo escureceu. A imagem desapareceu, e o silêncio reinou. É mesmo verdade o que toda a gente diz, se bem que com algumas diferenças. Não é a nossa vida inteira que passa à frente dos nossos olhos quando estamos prestes a morrer, mas sim os momentos que fizeram valer a pena vivê-la. E foi esta a última coisa que ele viu antes de ter uma bala a perfurar-lhe o crânio no decorrer de um qualquer ajuste de contas.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

            - Senhora Anders, desmarque todos os meus compromissos para hoje, se não se importar, incluindo os de maior urgência. Creio que o meu trabalho se encontra numa fase que exige toda a minha atenção.
            - Fique descansado, Dr. Patel – respondeu Anders com um sorriso no rosto - nada o incomodará.
            Dr. Patel agradeceu com um sorriso claramente forçado, e seguiu caminho pelo corredor de um branco reluzente. Usou a sua identificação para passar pelas grades de segurança que separavam a entrada do corredor, e depois de a trancar, seguiu em frente, descendo umas escadas e desaparecendo de vista.
            - Nunca conheci ninguém tão antipático – pensou Anders, dirigindo as suas atenções para o seu computador.
            Para além de o achar antipático, também o achava estranho, não só a ele mas também a todo aquele lugar. Trabalhava lá nem há um mês e estava longe de saber o que é que os médicos realmente faziam. Ela nunca via doentes a entrar, mas, ainda assim, já não era a primeira vez que ouvia os médicos a comentar a condição de um determinado paciente e até mesmo de ouvir gritos vindos do andar de baixo… e é claro, não só ela não estava autorizada a ver o que se passava, como também seria impensável fazer perguntas a quem quer que seja.
            Apesar de tudo, o trabalho era bem pago e não lhe era pedido para fazer muito, apenas tratar de agendar reuniões e de manter os doutores actualizados das mesmas. De resto não havia muito mais a acrescentar. Ao fim do dia, era isso que lhe interessava, e não podia estar mais grata por ter conseguido arranjar um trabalho minimamente decente ao fim de tanto tempo, e tencionava manter as coisas assim. Contudo, a sua percepção estava prestes a mudar.
            Um homem abriu a porta de vidro e seguiu na sua direcção. Usava um fato preto e o seu longo cabelo da mesma cor repousava sobre os seus ombros.
            - Boa noite – disse ele, num tom quase sem expressão, tal como o seu rosto – gostaria de falar com o Dr. Patel.
            - Boa noite – respondeu Anders – lamento, mas o Dr. Patel não quer ser incomodado.
            - Diga-lhe que é urgente.
            - Também me pediu para não ser incomodado mesmo em casos de urgência. Deseja marcar a sua reunião para outra data?
            Assim que ela levantou o olhar do monitor em busca de uma resposta, nada mais a esperava a não ser um olhar fulminante.
            - Vou dar-lhe a opção de me deixar passar a bem. Basta abrir a porta e evitaremos todos e quaisquer problemas.
            - Lamento, mas não posso fazer isso – disse ela, enquanto, discretamente, tentava activar o alarme silencioso que tinha debaixo da sua secretária, mas, por mais que tentasse, a sua mão não conseguia ultrapassar os poucos centímetros que a separavam do seu objectivo, como se uma parede invisível tive surgido do nada.
            - Isso está longe de ser uma boa ideia – disse ele.
            Anders começou a sentir-se a ser levantada, mas ninguém a segurava. Foi subindo no ar lentamente, debaixo do olhar inexpressivo daquele estranho homem, até que parou a poucos centímetros do tecto. Assustada, tentou gritar, mas nem um som saiu da sua boca. Restava-lhe apenas esperar o pior.
            Do nada, a porta da entrada abriu-se com um estrondo, e dois seguranças entraram de armas em punho.
            - Ponha-a no chão ou disparamos! – gritaram eles, mas sem efeito.
            O homem continuava a olhar para Anders, como se estivesse a tentar encontrar algo de interessante nela, e depois de mais um aviso, abriram fogo sobre ele. Todas as balas encontraram o alvo, aliás, não só o encontraram como o trespassaram, mas assim que abandonavam o seu corpo, já não eram uma qualquer liga metálica, mas sim cinzas.
            Lentamente, ele virou o seu rosto inexpressivo na direcção dos seguranças. Assim que se voltou paras os confrontar, Anders foi atirada violentamente contra a parede à sua esquerda, batendo com a cabeça, e caindo no chão já inconsciente.
            Uma nova rajada de balas foi disparada, obtendo um resultado exactamente igual ao anterior. Calmamente, ele tirou as mãos dos bolsos, e a esta altura, uma estranha neblina preta começava a emergir do seu corpo. Erguendo as suas mãos, também os seguranças eram elevados no ar. Tentaram usar as suas armas mais uma vez, mas agora nem premir o gatilho conseguiam. Do nada, elas explodiram, rebentando-lhes as mãos no processo, e enchendo aquela pacata divisão com assustadores gritos de dor, gritos esses que não paravam, apenas intensificavam. As suas vestes brancas começavam a parecer ensanguentadas, e sangue começava a escorre por todo o seu corpo, apesar de não haver qualquer tipo de feridas à vista, à excepção das mãos que explodiram. Os gritos acabaram por atingir o seu auge, e cessaram com a explosão daqueles dois homens, pintando as paredes brancas de vermelho, e cobrindo-as com pedaços de órgãos e ossos.
            Admirar o se trabalho não estava, nem de perto, nos seus planos. Voltou-se na direcção da porta que tão pacificamente queria atravessar, e avançou até ela, dobrando cada vez mais as suas barras de aço maciço a cada passo que dava, acabando por a arrancar das paredes que a seguravam assim que a alcançou.     
            As luzes agora cintilavam inquietas, e a estranha neblina que emanava do corpo daquele estranho homem tornava-se cada vez mais densa. Enquanto avançava em direcção às escadas, apercebeu-se de um médico que se aproximava vindo do corredor à sua direita, distraído ao olhar para a prancheta que tinha nas mãos, distracção essa que cessou com a escuridão intermitente. Olhou em frente, e tudo o que viu, quando o conseguia fazer, era uma pequena nuvem negra a pairar no chão, e que calmamente avançava na sua direcção. Rapidamente tentou atribuir uma explicação lógica àquele fenómeno, mas por mais que se esforçasse, não conseguia perceber como tal era possível. A temperatura e a humidade não tinham mudado e era impossível que um simples problema eléctrico culminasse em tal acontecimento. Imerso nestes pensamentos, o médico não se apercebeu que a calma nuvem tinha avançado pelas suas pernas, e quando essa realização desabou sobre ele, já era tarde demais. Abriu a boca para gritar, mas qualquer som que viesse a soltar foi abafado. Olhou para baixo e viu um braço a emergir do seu peito, coberto de sangue, sangue esse que pingava sobre o chão imaculadamente branco. A imagem começou a ficar desfocada e escura, o silêncio tornou-se absoluto, e já não foi capaz de se ver a cair numa poça do seu próprio sangue.
            O homem passou a mão sobre o seu braço esquerdo três vezes numa tentativa de se limpar, mas em vão, muito dificilmente iria sair aquele tipo de nódoa. Indiferente, seguiu calmamente pelas escadas abaixo com as mãos nos bolsos e com a neblina a seguir atrás dele. Esperava-o outro corredor, com o triplo do tamanho do anterior e com ambos os lados cobertos por celas decadentes. Continuou a passo calmo, ignorando os murmúrios, os actos de auto-mutilação, as violações e os corpos apodrecidos que viviam naquelas celas. Estava ali por uma única razão, e ela estava por detrás daquela porta de aço.
            Não parou diante dela. Pousou as suas mãos sobre ela e abriu-a calmamente, passando a ouvir nitidamente os gritos de alguém que tinha a sua cabeça a ser furada por uma broca eléctrica. Dr. Patel desligou a broca e olhou em frente:
            - Não sabes ser discreto, pois não?
            - Não passam de detalhes. A tua morte é a única coisa que me interessa verdadeiramente, os restantes não passam de pequenas distracções.
            - Eu dou-te isso e é assim que me agradeces?
            - Parece-me adequado. E faz mais sentido morreres às mãos daquilo que criaste do que eu enviar-te um postal com um agradecimento qualquer.
            - E o que te faz pensar que o vais conseguir fazer?
            Ele não disse nada, nem precisava de o fazer, bastou-lhe sorrir.
            Naquele preciso momento, todo o edifício começou a tremer, e o olhar de desprezo de Dr. Patel desapareceu, sendo substituído por puro medo:
            - O que estás a fazer? – perguntou.
            Como resposta teve apenas um sorriso mais largo, e, subitamente, sentiu algo a agarrar-lhe os braços e as pernas, puxando-o e deixando-o suspenso no ar. Olhou em volta aterrorizado, mas nada via, apenas sentia.
            - O que estás a fazer?!
            - Não é óbvio? Estou a matar-te.
            Dr. Patel continuou a olhar em volta, desesperadamente, à procura de uma saída que ele sabia ser inexistente, e por isso, decidiu terminar como achou melhor:
            - Podes matar-me agora mesmo, mas podes ter a certeza que isto não vai ficar assim!
            - Sim, eu conheço os teus amigos e sei que eles estão a caminho… mas passemos ao que realmente interessa, fartei-me demasiado depressa de te ouvir falar… agora quero ouvir-te gritar.
            Lentamente, a respiração ofegante de Dr. Patel veio a transformar-se num grito. Sangue começava a manchar as suas roupas e a arranjar caminho para se juntar ao chão. O grito foi intensificando-se gradualmente enquanto a pele e a carne eram rasgados e o sangue escarlate começava a escorrer livremente. Finalmente atingiu o ponto alto, um grito ensurdecedor, e logo de seguida, silenciado, por ter os membros do seu corpo arrancados e despedaçados, atirados violentamente contra as paredes daquela estranha divisão. A cabeça arranjou maneira de rebolar até aos pés do assassino, que a tomou de bom grado, segurando-a com a mão direita e rindo-se na sua cara horrorizada.
            - Preparem-se para disparar ao meu sinal!
            O homem voltou-se para a outra ponta do corredor, de onde tinham vindo essas palavras, e de onde agora apareciam dezenas de homens com equipamento a fazer lembrar uma qualquer equipa de uma força de intervenção, e uma que ele não conseguia reconhecer de lado nenhum.
            Sorriu enquanto atirava a cabeça de Dr. Patel ao chão e lhes lançava uma arrepiante gargalhada, ao mesmo tempo que a neblina escurecia e o cobria.
            - ABRIR FOGO! – berrou um deles, berro esse que foi abafado por aquela gargalhada e pela explosão negra que avançou na sua direcção, e tão intensa que destruiu os principais suportes do edifício, fazendo-o desabar sobre ele mesmo.
            Enquanto o Sol se punha e se ouviam carros a aproximar, aquela neblina via-se a sair dos escombros, e foi só uma questão de tempo para que aquele homem voltasse a aparecer, estalando os nós dos dedos, e ao olhar para o horizonte disse, sem conseguir resistir em sorrir:

            - Que os jogos comecem.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Lágrimas Vermelhas

Aprendemos a viver cada momento
Como se fosse único e perfeito,
Mas de dor não fica isento
Aquele que fica com o sonho desfeito.

Viver ao sabor do vento
Pairar sob o calor do sol
Apenas para que, com o tempo,
Ser colhido por um doentio anzol.

Colhidos, desprovidos de felicidade,
Embebidos em depressão,
Rodeados por falsidade
E destruídos por dentro, ficando sem coração.

Não adianta ter pena,
Nem prolongar o sofrimento.
O melhor a fazer é tornar a alma serena,
Domá-la e acalmar o seu Inferno.

Instantaneamente, a vida ganha uma nova cor,
Ou melhor, a perda de várias,
Porque agora a dor tem sabor
E consegue ser saciada através das várias escumalhas.

Simplesmente se passa a apreciar
Todo o mal em todo o seu esplendor,
Tanto por na nossa essência se criar,
Como também noutros se abater como um faminto predador.

Está claro o mal das acções,
Mas e quanto às palavras?
Claras são também as razões
Que defendem que elas não são nada calmas.

Um corpo partido pode ser curado,
Mas o mesmo não pode ser dito
De um espírito que foi quebrado
E que se convenceu de que está perdido.

Longo e tortuoso é esse caminho,
Cheio de obstáculos colossais
E sem qualquer sentido,
Apenas para nos fazer crer que não passamos de animais.
E animais nos tornamos.
Frios e calculistas ficamos,
Algo longe de humanos,
Mas ainda assim humanos.

Sentir tornar-se uma palavra estranha,
E chorar faz-lhe companhia,
Pois nenhuma lágrima se apanha
No deserto que se tornou esta vida.

Contudo, há necessidade de se expressar.
As palavras ajudam e muito,
Pois são elas que ficam a chorar,
Ou pelo menos parece-lo é o seu intuito.

Mas até ela fazem sacrifícios,
Ou melhor, os mesmos são precisos
Para que elas cumpram os seus objectivos
E não bloqueiem em momentos indecisos.

Aqui estou, com um novo corte no braço,
Aproveitando o líquido que escorre,
Calmamente, para o papel que abraço,
E que espera que eu o decore.

Sentir não se sente,
Apenas existe a “desesperada” tentativa.
No fim só se mente,
E espera-se pela respectiva medida punitiva.

Que tudo corra pelo melhor.















Ass: Daniel Carvalho


sexta-feira, 18 de abril de 2014

          A lua-cheia já ia alta, e iluminava-o a ele e ao bar de dois andares de que lhe tinham falado. Era uma autêntica espelunca, mas ainda assim, conseguia ter algum movimento e ele sabia que ela estava ali, sob pesada segurança.
            Saiu do beco de onde estudava o local, e avançou. A luz tremida do candeeiro que tinha à sua frente acabou por morrer assim que passou por baixo dele, e tal despertou o olhar curioso dos dois brutamontes que guardavam a entrada. Repararam numa silhueta que se aproximava, mas não lhe conseguiram ver a cara, esperaram mais um pouco, até que viram um sorriso animalesco… mais uns passos, e reconheceram quem era. Sacaram das pistolas que tinham atrás das costas, mas no momento em que as apontaram, já ele estava demasiado perto. Avançou em corrida, segurando um punhal em cada uma das mãos cobertas por cabedal, e num simples e rápido gesto, degolou o da esquerda. Quanto ao outro, desferiu-lhe um pontapé na barriga que o projectou contra a parede, apenas para ver o seu crânio trespassado por outro punhal.
            Contemplou a sua obra por instantes, uma poça de sangue no chão, proveniente da garganta cortada de um corpo ainda com espasmos, o mesmo sangue que lhe tinha sido espirrado por cima do ombro direito do casaco. Ainda segurando o pescoço do outro, contemplou o ar aterrorizado no seu rosto, agora coberto pelo sangue proveniente do golpe que lhe tinha sido feito no meio dos olhos.
            Retirou o punhal e deixou o corpo estender-se no chão. Fê-los rodopiar uma vez pelos seus dedos, e avançou até à porta. Inspirou fundo e enfiou-lhe a sua bota direita, arrancando-a pelas dobradiças dada a força do impacto. Avançou calmamente para dentro do bar, debaixo de ruído e do olhar dos clientes e dos seguranças. Estes, e até mesmo o bartender, apreçaram-se a servir-se das suas fiéis armas, e ele prontamente respondeu. Os seus punhais voaram na direcção das cabeças dos dois seguranças que estavam ao fundo, mesmo ao lado das escadas que levavam ao próximo andar, e não falharam o alvo. O bartender apontou-lhe a caçadeira de canos cerrados que tinha escondida debaixo do balcão à cabeça, mas não conseguiu premir o gatilho a tempo. Ela foi-lhe puxada das mãos, e a sua cabeça atirada violentamente contra o balcão, apagando-lhe os sentidos. As únicas duas balas foram desperdiçadas em outros dois seguranças, atirando-os pelas janelas do lado esquerdo, e acertando de raspão nos clientes descontrolados que procuravam a tudo o custo desviar-se das balas que voavam e manter-se vivos.
            Ele deixou cair a caçadeira e retirou das suas costas duas pistolas, dando início é um bélico tiroteio enquanto ele avançava sem medo das balas que pareciam temer acertar-lhe, culminando num bar agora decorado com cadáveres, paredes esburacadas e cobertas de sangue e pedaços de cérebro. Perante os restantes presentes aterrorizados, ele falou enquanto recuperava o fôlego e carregava as armas, deixando escapar o tom de voz de um verdadeiro animal:
            - Se querem viver, a porta é ali, mas não vou esperar por ninguém.
            Eles obedeceram, e aos tropeções fizeram o que lhes era possível fazer para conseguirem sair dali. No meio daquele barulho todo, ele apercebeu-se de passos acelerados vindos do andar de cima e em direcção às escadas. Encostou-se à parede e esperou. Não tardaram a aparecer mais dois seguranças armados, um atrás do outro, dado o quão estreita era a passagem por aqueles degraus em cotovelo. Retirou um pedaço de arame farpado do interior do seu casaco, e com ele envolveu o pescoço do último, apertando-o o mais que podia, cravando-lho bem fundo na carne. O barulho que fez chamou a atenção do outro, que se virou apenas para ver o arame a ser puxado, abrindo e trazendo agarrado a ele parte do pescoço daquele que era o seu amigo de infância, sendo-lhe projectada contra a cara uma grande quantidade de sangue, cegando-o temporariamente. Levou as mãos à cara para tentar limpar os olhos, e ele também se apreçou. Largou o corpo, e tomou a pistola que o outro tinha deixado cair para se limpar. Agarrou-a pelo cano, saltou para cima dele, e debaixo dos seus gritos de misericórdia, desferiu-lhe coronhadas, uma e outra e outra vez, até que acabou por lhe esmagar o crânio.
            Levantou-se, com o coração bater aceleradamente por força de toda aquela adrenalina, e avançou para as escadas, subindo-as lentamente, mas de forma a que percebessem de que ele se aproximava. Ele já ia a meio, e já lhe era possível ver onde ela estava, sentada num luxuoso sofá, nos braços dele, e cara afundada no seu ombro.
            Chegou ao topo, e mais um veio na sua direcção, segurando uma faca. Um olhar bastou para que ele hesitasse, mas não chegou a parar. Ele agarrou-lhe o braço que empunhava a faca, puxou-o na sua direcção, ajustou a faca, e lançou-a contra ele, perfurando-lhe o crânio pela base do maxilar.
            Ela tremia descontroladamente enquanto o outro lhe afagava as costas e lhe dizia que tudo ia correr bem. Contudo, aquele carinhoso abraço tinha que acabar, tal exigia a situação. Levantou-se e avanço na sua direcção:
            - Achas que podes vir aqui destruir aquilo que me custou a construir e sair impune?
            - Eu já vos tinha avisado.
            - És uma aberração e não mais que isso. Ela está muito melhor comigo.
          - Ela era a única pessoa que acalmava o monstro que vive em mim, e ela sabia bem disso. Tudo o que aconteceu e vai acontecer esta noite é apenas culpa vossa.
            - Seu…
            E sem terminar a frase lançou-lhe um soco de direita que lhe acertou em cheio na cara e que o fez recuar alguns passos. Já movido pela confiança de conseguir fazer algo que mais ninguém naquela noite conseguiu, avançou, sem aquilo que mais devia ter… medo. Ele recompôs-se e lançou-lhe um olhar que o fez gelar por dentro, agarrou-o pela nuca, e puxou-o na sua direcção, apenas para que pudesse cobrir-lhe o pescoço com os seus dentes, fazendo-o soltar um grito agonizante, silenciando-o assim que lhe arrancou um bocado da sua carne, apenas para a cuspir para o chão logo de seguida.
            Ela olhou-o através dos seus cabelos loiros enquanto ele limpava o sangue que lhe escorria pela boca.
            - Por favor, desculpa – pediu ela, tentando afundar-se o sofá enquanto ele se aproximava.
            - Em tempos era capaz de perdoar, mas não agora. Estou farto.
            - Por… favor – soluçava ela.
            - A única coisa que eu vou lamentar esta noite – disse, enquanto a tirava do sofá e a sentava numa cadeira – é não ser capaz de te fazer sentir a dor e o tormento porque me fizeste passar.
            - Eu lamento… imenso – disse ela, sabendo que não podia fazer nada para se salvar – desculpa-me!
            Ele segurava agora uma corda que encontrara pelo caminho, e com ela amarrou-a à cadeira.
            - Não era a minha intenção.
            - Todos devemos pagar pelo mal que fizemos, e tu, ao contrário do que possas pensar, não és mais que ninguém.
            Avançou até à faca com que tinha sido ameaçado inicialmente enquanto ela chorava. Removeu-a do crânio em que repousava e avançou até ela. Começou a fazer-lhe pequenos cortes nos braços, pernas, rosto, pescoço, costas e barriga, de forma quase indolor dada a sua precisão, mas ela não tardou a sentir todas essas feridas a transformarem-se numa só que a percorria de uma ponta a outra. A garrafa de whisky que tinham enxertado foi derramada por cima dela, e ela sentiu o ardor do álcool em contacto com o sangue, transmitindo-o num arrepiante grito e contorcendo-se na cadeira enquanto o líquido escorria por ela abaixo.
            Ele foi despejando o resto da garrafa pelo resto do andar, e quando ela ficou vazia, deixou-a cair, partindo-se assim que tocou no chão. Avançou até ela, que ainda digeria aquele choque, agarrou-a pelos cabelos e levantou-lhe a cabeça. Olhou o seus olhos azuis sem demonstrar qualquer expressão, e disse:
            - Vemo-nos no Inferno.
            Tais palavras fizeram-na recomeçar a chorar.
            - Por favor… não! – suplicou ela.
            Ele nada disse. Avançou até às escadas e quando lá chegou, sacou de um isqueiro e exibiu-o.
            - Não! – continuou ela – POR FAVOR, NÃO!
            Ele acendeu o isqueiro, e deixou-o cair. Criando uma gigantes chama que não se tardou a propagar por todo o espaço.
            Desceu as escadas e abandonou o bar com as mãos nos bolsos e debaixo dos gritos de desespero que ela soltava, e que não tardaram a transformar-se em gritos de dor. Cá fora, e do outro lado da rua, ele olhou para o incêndio, e ficou a ouvi-la. Os gritos conseguia ecoar pela noite adentro, mas assim que atingiram o seu auge, começaram a fraquejar, até que já não era possível ouvi-la.
            Não tardou para que o próprio bar acabasse por ceder à intensidade das chamas, e quando tal aconteceu, ele voltou-se e seguiu o seu caminho, sem primeiro deixar cair uma lágrima no passeio.

            

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A__R

Neste hábito vivemos
De eleger datas
Para demonstrar sentimentos
Que não precisam de alturas exactas
Para ser demonstrados
Mas sim bradados
Todos os dias de todo o ano
Pelos nossos quatro cantos.

Para quê arruinar este romântico sentimento
Dedicando-lhe um certo tempo,
Tempo esse que não é aproveitado
Pois quem o devia fazer
Apenas se lembra dele no dia ditado
Deixando a outra pessoa num quase esquecimento
Não num único instante
Mas sim num interminável momento.

Não é só o tempo que destrói o sentimento
Mas a forma como o mesmo é tratado.
Morto está quase o romance
O pilar chave desta bela face
Esquecido pela maior das vontades
Por um mundo de míseros rebeldes
Que apenas ligam ao prazer da carne
E cuja morte seria um prazer dar-me

Nós, romântico povo
E de igualmente romântica língua,
Lidamos agora com algo novo
Apodrecido em toda a linha,
E sem qualquer digno valor solto
E que na ignorância fica
Não exibindo nada que impeça
A sua animalesca natureza

As minhas palavras de nada servem
E o que faço já não é visto como era.
De nada servem e os sonhos que esperem
Pois a solidão impera
Tal como o seu depressivo irmão
Que corrói a alma
E o corpo são
Deixando apenas um monte de nada.

Esperançoso me farei acompanhar de poesia
E também de histórias românticas
Esperando pelo dia
Que se volte a respeitar estas semânticas
Pois são elas que fazem deste sentimento
Muito mais que um simples momento
Fazendo-o estender-se pela eternidade
Por palavras e por cordas me expresso
Dizendo com pouco sentido
Tudo aquilo em que penso
E com pouco sentido porque não costuma ser ouvido
Por ser uma raça em vias de extinção
Algo mais que uma simples face na multidão

Mas nada interessa
Se é que alguma vez interessou.
Não interessa o quanto eu peça
O meu mundo nunca mudou.
Palavras desperdiçadas
Apenas pelas paredes apreciadas,
A fazer dos peixes lembrar
Mas o sentido não deixa de acertar.

Dou por mim assim
Debaixo do som da minha melodia
E das palavras tecladas por mim.
Cabe-lhes a elas sentir o que eu sentia
E que vi chegar ao fim.
Essa é a tarefa que lhes dei
Porque esses dons em mim morreram.
Não temo enquanto as trevas consomem a vida que optei
Porque os demónios nunca choram.











Ass: Daniel Teixeira de Carvalho

sábado, 25 de janeiro de 2014

         A noite já vai longa. Contemplo o céu estrelado neste banco à beira rio, iluminado pelas inúmeras estrelas. Os meus pés batem paciente e ritmadamente no chão de pedra lisa. Olho para o relógio, quase 3 da manhã e não há sinais dele. Atrasado como sempre, é o que eu penso, e em mais podia eu pensar, se não estivesse já farto de o fazer. É o que tenho feito desde sempre, é o que me tem destruído por dentro, e o que me trouxe de volta para me destruir novamente.
            Levo as mãos à cabeça enquanto as imagens e os tempos voltam a mim. Apoio a cabeça nelas e os cotovelos nos joelhos, contemplando o nada, a escuridão, ou pelo menos assim queria eu que fosse. Suspiro ruidosamente à espera que passe, e essa mesma postura eu não abandono.
            Oiço passos, mas não levanto os olhos para ver quem era.
            - Vejo que estás à minha espera – disse ele.
            - Não estou sempre? – perguntei eu, ainda com a cara mergulhada nas mãos.
            - Tinha coisas para fazer – continuou ele, avançando e sentando-se ao meu lado.
            - Como sempre.
            - Eu pensava que isso já tinha passado.
            - Eu também.
            Ficámos em silêncio por alguns segundos, até que ele perguntou:
            - E qual é o plano agora?
            - O que te parece?
            Reparei que ele ficou a olhar para mim seriamente, ou melhor, uma surpresa séria, como se não acreditasse que lhe estava a pedir aquilo.
            - E eu a pensar que não vias essas coisas com bons olhos.
            - Tecnicamente seria um homicídio e não um suicídio.
            - Mais um homicídio a pedido que outra coisa.
            - Mas ias ser tu a premir o gatilho e não eu.
            - É verdade.
            - Não te agrada a ideia?
            - A questão está longe de ser essa.
            - Vais estar com moralismos agora?
            - Queres que esteja?
            - Não, obrigado.
            Seguiu-se mais um momento de silêncio, desta vez bem mais longo, em que ele nada fez a não ser olhar para mim ou para o horizonte, enquanto eu continuava com a cara mergulhada nas mãos.
            Senti um clarão, rapidamente seguido pelo som de um trovão. Segundos depois comecei a sentir tímidas gotas de chuva a caírem-me na nuca.
            - Parece que vem aí uma tempestade – disse ele.
            - Não podíamos ter escolhido um momento melhor.
            - Se estás à procura de uma morte poética, sim, dificilmente arranjarias algo melhor.
            - Vamos acabar com isto de uma vez por todas.
            - De certeza?
            Dei por mim a pensar. Seria mesmo isto que eu queria? Não haveria uma outra solução? Não seria possível resolver este problema sem ser desta forma? Será… já chega…
            - Sim.
            - Muito bem.
            Ele levantou-se e colocou-se diante de mim. Como que se apercebendo do que estava prestes a acontecer, a mãe natureza pareceu querer demonstrar a sua pena, fazendo com que a chuva caísse com maior intensidade. Ouvi o som de um casaco ser afastado e o de uma pistola a ser removida do seu coldre.
            - Vais querer ficar assim?
            - Não – respondi eu, levantando a cabeça e encostando-me ao banco do jardim, olhando para aquela figura com o rosto tapado por óculos escuros, um cachecol e um capuz – tenciono morrer com alguma dignidade.
            - Foi um prazer.
            - O prazer é todo o meu.
            Vi um clarão ao fundo, mesmo por detrás da figura, e não tardou a seguir-se o som de uma bala a ser disparada, abafado pelo som de mais um trovão.

            Enfim paz.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

           Há quem diga que não se pode estar pronto para lidar com a morte de alguém, mas tal é possível e encontra-se ao alcance de qualquer um, bastando apenas mentalizar-se que é algo que irá acontecer mais cedo ou mais tarde. Ainda assim é natural o choque e os sentimentos resultantes que se manifestam nos dias seguintes, marcados logos por uma nova rotina que já não pode contar com essa pessoa.
            Esse dia acabou por chegar, e aqui me vejo, a contemplar todo o funeral. Ainda me deixa atónito a quantidade de pessoas que decidiu comparecer. Olho em volta e para os portões. Cada vez são mais os que os atravessam. Talvez preferisse assistir a tudo de uma forma mais discreta, talvez num canto com uma boa visibilidade, mas o mar de gente arrastou-me para aqui para a linha da frente. Sem dúvida alguma foi-me concedido o melhor lugar. As palavras do padre embalam-me enquanto contemplo pensativo os dois caixões de madeira de carvalho envernizada que estão prestes a ser enterrados. Ainda pensei em não comparecer, mas achei que devia dirigir-lhes um último obrigado, esforçando-me para estar presente e contemplando-os em silêncio. Devo-lhes muito e isso é certo, aliás, não só é certo como claramente visível. Parece que a sua existência não foi significativa só para mim, e as lágrimas de uns e de outros são a prova viva disso.
            As despedidas são feitas e perguntam se alguém está disposto a dar umas últimas palavras. Talvez eu fosse a pessoa mais indicada, mas optei por me remeter ao silêncio. Ninguém se voluntariou e ninguém reparou que eu lá estava. Porque é que haveriam de o fazer?

            Chegou a hora de devolver os caixões à terra. Vários homens agarram neles e mergulha-nos delicadamente nos seus locais de repouso enquanto o som de inúmeros prantos se intensifica e ecoa por todo o espaço. Talvez devesse segui-los, mas nada sinto. Talvez seja verdade o que dizem, que as lágrimas são um dom a que apenas os humanos têm o direito… e que os demónios nunca choram.


Ass: Daniel Teixeira de Carvalho