- Senhora Anders,
desmarque todos os meus compromissos para hoje, se não se importar, incluindo
os de maior urgência. Creio que o meu trabalho se encontra numa fase que exige
toda a minha atenção.
- Fique descansado, Dr. Patel – respondeu Anders com um
sorriso no rosto - nada o incomodará.
Dr. Patel agradeceu com um sorriso claramente forçado, e
seguiu caminho pelo corredor de um branco reluzente. Usou a sua identificação
para passar pelas grades de segurança que separavam a entrada do corredor, e
depois de a trancar, seguiu em frente, descendo umas escadas e desaparecendo de
vista.
- Nunca conheci ninguém tão antipático – pensou Anders,
dirigindo as suas atenções para o seu computador.
Para além de o achar antipático, também o achava
estranho, não só a ele mas também a todo aquele lugar. Trabalhava lá nem há um
mês e estava longe de saber o que é que os médicos realmente faziam. Ela nunca
via doentes a entrar, mas, ainda assim, já não era a primeira vez que ouvia os
médicos a comentar a condição de um determinado paciente e até mesmo de ouvir
gritos vindos do andar de baixo… e é claro, não só ela não estava autorizada a
ver o que se passava, como também seria impensável fazer perguntas a quem quer
que seja.
Apesar de tudo, o trabalho era bem pago e não lhe era
pedido para fazer muito, apenas tratar de agendar reuniões e de manter os doutores
actualizados das mesmas. De resto não havia muito mais a acrescentar. Ao fim do
dia, era isso que lhe interessava, e não podia estar mais grata por ter conseguido
arranjar um trabalho minimamente decente ao fim de tanto tempo, e tencionava
manter as coisas assim. Contudo, a sua percepção estava prestes a mudar.
Um
homem abriu a porta de vidro e seguiu na sua direcção. Usava um fato preto e o
seu longo cabelo da mesma cor repousava sobre os seus ombros.
- Boa noite – disse ele, num tom quase sem expressão, tal
como o seu rosto – gostaria de falar com o Dr. Patel.
- Boa noite – respondeu Anders – lamento, mas o Dr. Patel
não quer ser incomodado.
- Diga-lhe que é urgente.
- Também me pediu para não ser incomodado mesmo em casos
de urgência. Deseja marcar a sua reunião para outra data?
Assim que ela levantou o olhar do monitor em busca de uma
resposta, nada mais a esperava a não ser um olhar fulminante.
- Vou dar-lhe a opção de me deixar passar a bem. Basta
abrir a porta e evitaremos todos e quaisquer problemas.
- Lamento, mas não posso fazer isso – disse ela,
enquanto, discretamente, tentava activar o alarme silencioso que tinha debaixo
da sua secretária, mas, por mais que tentasse, a sua mão não conseguia
ultrapassar os poucos centímetros que a separavam do seu objectivo, como se uma
parede invisível tive surgido do nada.
- Isso está longe de ser uma boa ideia – disse ele.
Anders começou a sentir-se a ser levantada, mas ninguém a
segurava. Foi subindo no ar lentamente, debaixo do olhar inexpressivo daquele
estranho homem, até que parou a poucos centímetros do tecto. Assustada, tentou
gritar, mas nem um som saiu da sua boca. Restava-lhe apenas esperar o pior.
Do nada, a porta da entrada abriu-se com um estrondo, e
dois seguranças entraram de armas em punho.
- Ponha-a no chão ou disparamos! – gritaram eles, mas sem
efeito.
O homem continuava a olhar para Anders, como se estivesse
a tentar encontrar algo de interessante nela, e depois de mais um aviso,
abriram fogo sobre ele. Todas as balas encontraram o alvo, aliás, não só o
encontraram como o trespassaram, mas assim que abandonavam o seu corpo, já não
eram uma qualquer liga metálica, mas sim cinzas.
Lentamente, ele virou o seu rosto inexpressivo na
direcção dos seguranças. Assim que se voltou paras os confrontar, Anders foi
atirada violentamente contra a parede à sua esquerda, batendo com a cabeça, e
caindo no chão já inconsciente.
Uma nova rajada de balas foi disparada, obtendo um
resultado exactamente igual ao anterior. Calmamente, ele tirou as mãos dos
bolsos, e a esta altura, uma estranha neblina preta começava a emergir do seu
corpo. Erguendo as suas mãos, também os seguranças eram elevados no ar.
Tentaram usar as suas armas mais uma vez, mas agora nem premir o gatilho
conseguiam. Do nada, elas explodiram, rebentando-lhes as mãos no processo, e
enchendo aquela pacata divisão com assustadores gritos de dor, gritos esses que
não paravam, apenas intensificavam. As suas vestes brancas começavam a parecer
ensanguentadas, e sangue começava a escorre por todo o seu corpo, apesar de não
haver qualquer tipo de feridas à vista, à excepção das mãos que explodiram. Os
gritos acabaram por atingir o seu auge, e cessaram com a explosão daqueles dois
homens, pintando as paredes brancas de vermelho, e cobrindo-as com pedaços de
órgãos e ossos.
Admirar o se trabalho não estava, nem de perto, nos seus
planos. Voltou-se na direcção da porta que tão pacificamente queria atravessar,
e avançou até ela, dobrando cada vez mais as suas barras de aço maciço a cada
passo que dava, acabando por a arrancar das paredes que a seguravam assim que a
alcançou.
As luzes agora cintilavam inquietas, e a estranha neblina
que emanava do corpo daquele estranho homem tornava-se cada vez mais densa.
Enquanto avançava em direcção às escadas, apercebeu-se de um médico que se
aproximava vindo do corredor à sua direita, distraído ao olhar para a prancheta
que tinha nas mãos, distracção essa que cessou com a escuridão intermitente.
Olhou em frente, e tudo o que viu, quando o conseguia fazer, era uma pequena
nuvem negra a pairar no chão, e que calmamente avançava na sua direcção.
Rapidamente tentou atribuir uma explicação lógica àquele fenómeno, mas por mais
que se esforçasse, não conseguia perceber como tal era possível. A temperatura
e a humidade não tinham mudado e era impossível que um simples problema
eléctrico culminasse em tal acontecimento. Imerso nestes pensamentos, o médico
não se apercebeu que a calma nuvem tinha avançado pelas suas pernas, e quando
essa realização desabou sobre ele, já era tarde demais. Abriu a boca para
gritar, mas qualquer som que viesse a soltar foi abafado. Olhou para baixo e
viu um braço a emergir do seu peito, coberto de sangue, sangue esse que pingava
sobre o chão imaculadamente branco. A imagem começou a ficar desfocada e
escura, o silêncio tornou-se absoluto, e já não foi capaz de se ver a cair numa
poça do seu próprio sangue.
O homem passou a mão sobre o seu braço esquerdo três
vezes numa tentativa de se limpar, mas em vão, muito dificilmente iria sair
aquele tipo de nódoa. Indiferente, seguiu calmamente pelas escadas abaixo com
as mãos nos bolsos e com a neblina a seguir atrás dele. Esperava-o outro
corredor, com o triplo do tamanho do anterior e com ambos os lados cobertos por
celas decadentes. Continuou a passo calmo, ignorando os murmúrios, os actos de
auto-mutilação, as violações e os corpos apodrecidos que viviam naquelas celas.
Estava ali por uma única razão, e ela estava por detrás daquela porta de aço.
Não parou diante dela. Pousou as suas mãos sobre ela e
abriu-a calmamente, passando a ouvir nitidamente os gritos de alguém que tinha
a sua cabeça a ser furada por uma broca eléctrica. Dr. Patel desligou a broca e
olhou em frente:
- Não sabes ser discreto, pois não?
- Não passam de detalhes. A tua morte é a única coisa que
me interessa verdadeiramente, os restantes não passam de pequenas distracções.
- Eu dou-te isso e é assim que me agradeces?
- Parece-me adequado. E faz mais sentido morreres às mãos
daquilo que criaste do que eu enviar-te um postal com um agradecimento
qualquer.
- E o que te faz pensar que o vais conseguir fazer?
Ele não disse nada, nem precisava de o fazer, bastou-lhe
sorrir.
Naquele preciso momento, todo o edifício começou a tremer,
e o olhar de desprezo de Dr. Patel desapareceu, sendo substituído por puro
medo:
- O que estás a fazer? – perguntou.
Como resposta teve apenas um sorriso mais largo, e,
subitamente, sentiu algo a agarrar-lhe os braços e as pernas, puxando-o e
deixando-o suspenso no ar. Olhou em volta aterrorizado, mas nada via, apenas
sentia.
- O que estás a fazer?!
- Não é óbvio? Estou a matar-te.
Dr. Patel continuou a olhar em volta, desesperadamente, à
procura de uma saída que ele sabia ser inexistente, e por isso, decidiu
terminar como achou melhor:
- Podes matar-me agora mesmo, mas podes ter a certeza que
isto não vai ficar assim!
- Sim, eu conheço os teus amigos e sei que eles estão a
caminho… mas passemos ao que realmente interessa, fartei-me demasiado depressa
de te ouvir falar… agora quero ouvir-te gritar.
Lentamente, a respiração ofegante de Dr. Patel veio a
transformar-se num grito. Sangue começava a manchar as suas roupas e a arranjar
caminho para se juntar ao chão. O grito foi intensificando-se gradualmente enquanto
a pele e a carne eram rasgados e o sangue escarlate começava a escorrer
livremente. Finalmente atingiu o ponto alto, um grito ensurdecedor, e logo de
seguida, silenciado, por ter os membros do seu corpo arrancados e despedaçados,
atirados violentamente contra as paredes daquela estranha divisão. A cabeça
arranjou maneira de rebolar até aos pés do assassino, que a tomou de bom grado,
segurando-a com a mão direita e rindo-se na sua cara horrorizada.
- Preparem-se para disparar ao meu sinal!
O homem voltou-se para a outra ponta do corredor, de onde
tinham vindo essas palavras, e de onde agora apareciam dezenas de homens com
equipamento a fazer lembrar uma qualquer equipa de uma força de intervenção, e
uma que ele não conseguia reconhecer de lado nenhum.
Sorriu enquanto atirava a cabeça de Dr. Patel ao chão e
lhes lançava uma arrepiante gargalhada, ao mesmo tempo que a neblina escurecia
e o cobria.
- ABRIR FOGO! – berrou um deles, berro esse que foi abafado
por aquela gargalhada e pela explosão negra que avançou na sua direcção, e tão
intensa que destruiu os principais suportes do edifício, fazendo-o desabar
sobre ele mesmo.
Enquanto o Sol se punha e se ouviam carros a aproximar,
aquela neblina via-se a sair dos escombros, e foi só uma questão de tempo para
que aquele homem voltasse a aparecer, estalando os nós dos dedos, e ao olhar
para o horizonte disse, sem conseguir resistir em sorrir:
- Que os jogos comecem.