terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Uma Realidade Insuficiente

            Procurar definir o que a realidade realmente é acaba por ser o mesmo que procurar determinar o quão simples o contínuo espácio-temporal acaba por ser. A sua aparente simplicidade proporciona um infinito número de possibilidades quanto ao seu verdadeiro propósito e significado, todas elas válidas, somente umas mais que outras.

            Dizer que o real é tudo aquilo que os nossos sentidos são capazes de perceptir não é mais que um acto de preguiça abismal praticado por aqueles que se encontram alheios ao verdadeiro potencial desses mesmos sentidos. Em parte, a culpa não é inteiramente deles, mas sim desta sociedade paradoxalmente funcional onde nos encontramos e onde cada indivíduo é visto apenas como uma peça numa longa e complexa máquina cujo funcionamento deve ser mantido a todo o custo. Contudo, isto não faz deles inocentes.

            Uma vez mais, ter o que vemos, ouvimos, saboreamos, cheiramos e sentimos como real e garantido é algo preguiçosa e perigosamente ingénuo. A subjectividade da realidade assim o garante. Podemos ir ainda mais longe e interpretá-la filosoficamente, onde então chegamos à conclusão de que o simples facto de questionarmos a sua existência é mais do que suficiente para garantir a sua inexistência. Neste sentido, e de forma a evitar falsas percepções, a chave está em manter uma mente aberta, mente essa cuja aparente simplicidade é também inexistente.

            A complexidade da mente humana não é uma incógnita mas sim uma variável, acompanhando directamente o interesse individual para o seu aperfeiçoamento. Ainda assim, é inegável que o seu potencial inerente é igualmente infinito quando comparado com os já referidos. Isto leva-nos, portanto, ao verdadeiro propósito deste diálogo. Apenas porque algo se forma, acontece ou se desenrola na mente de alguém não implica que não seja real. Claro que de um ponto de vista sensorial a interpretação cai na subjectividade, mas, ao fim e ao cabo, acabamos por não perceptir nada fisicamente.

            Sejam essas construções memórias ou frutos do trabalho árduo da nossa imaginação (consciente ou inconscientemente), são indubitavelmente reais e um factor importante no que toca a assegurar o nosso bom funcionamento. Claro está que tudo deve ser racionalizado.

            O menosprezar de tamanho potencial deve ser visto como uma enorme pena e uma tragédia ainda maior, principalmente quando tal se deve à livre vontade que o indivíduo em questão demonstra quando se vê chamado a assumir o seu papel na complexa máquina social, no qual arrisca perder a sua humanidade no processo, ou pelo menos parte dela, a parte que o permite fugir da realidade e experienciar todas as outras.

            

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Nos Meus Inquietos Sonhos, um Farol e Uma Cidade

          Numa nova visita pelo nevoeiro, dei por mim num pequeno bote. Continuava tudo a ser bastante familiar. Continuava a seguir o meu propósito e ao encontro de alguém. Tomando os remos, segui viagem, mas rapidamente me apercebi de que algo não estava bem. Nesta cidade que o nevoeiro faz sua, tudo tem um propósito, e uma vez que aparentavam existir alterações a este momento que tenho vindo a reviver, podia apenas questionar-me quanto à razão… e também que planos teria para mim.

            Normalmente limitar-me-ia a atravessar um rio e após uma série de eventos por mim já conhecidos, voltaria a reviver tudo num ciclo praticamente infinito. Mas desta vez o rio era algo mais, e a primeira deixa de que algo diferente me aguardava surgiu quando o nevoeiro se dissipou. Ali estava eu, em pleno mar aberto, na companhia da solidão e do silêncio. Olhando em volta nada via, nada à excepção de uma luz, uma luz bastante familiar. Tomando novamente os remos segui no seu encalce, expectante, mas cuidadoso. Por longos momentos parecia que não conseguia sair do mesmo sítio, talvez fosse o próprio cansaço ou a solidão em si a tomar a melhor de mim, mas creio que era suposto ser assim. Olhando para o céu estrelado num momento de descanso, reparei que algo por lá navegava, e que crescia com o passar de cada segundo. Estava a aproximar-se. Instintivamente saltei do bote e entreguei-me àquelas águas geladas, no preciso momento em que aquele avião incandescente se despenhava alguns metros mais à frente.

            Aquele momento em que ar voltou a entrar nos meus pulmões foi sem dúvida alguma uma benesse, mas atendendo à quantidade de destroços que me rodeavam, faltava saber de quem. Para além disto, a luz estava agora diante de mim, e podia ver claramente aquilo que realmente era. Um farol. Uma imponente estrutura no meio do oceano. O meu bote estava perdido nos destroços e estes não me serviriam de nada nesta situação. Restava-me apenas seguir em frente antes que as águas me consumissem.

            Alcancei a base da estrutura e subi as suas escadas. Uma bela e gigantesca porta dourada entreabriu-se à minha chegada. Um estranho convite ao qual eu não me podia dar ao luxo de recusar.  Empurrei o seu colossal peso o mais que pude até que me foi possível entrar, e assim que o fiz, ela fechou-se prontamente, deixando-me às escuras. O som daquilo que podia ser uma espécie de gerador ecoou e luzes acenderam-se, ou pelo menos algumas, tanto decorando o espaço, como indicando um caminho pela escadaria que agora surgia à minha esquerda. Aos meus pés jazia um longo pedaço de tecido, um que certamente adornava a estátua que tinha à minha frente. Estava bastante degradado, mas no seu fundo escarlate notava-se claramente em dourado “Nem deuses nem reis. Apenas o Homem”. Seguindo as escadas na companhia do ecoante som dos meus passos, deparei-me com um estranho submarino, ou pelo menos foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando me deparei com tamanha maquinação. Ocupei o seu interior, e aproveitei os seus bancos para descansar um bocado. As minhas roupas continuavam encharcadas, e eu não podia continuar neste estado muito tempo. No meio da minha reflexão deparei-me com uma alavanca, e perante a falta de alternativas, tomei-a e puxei-a. A porta por onde entrei fechou-se, e o submarino balançou, atirando-me de um lado ao outro no seu interior. Sem aviso, senti-o a cair e parando somente quando atingiu água… mas não parou realmente. O vidro na porta permitia-me ver o que se passava, e o que num momento não passava de uma longa parede de betão submersa, tornou-se numa vista espantosa de uma cidade subaquática. Conseguia ver luminosos outdoors publicitários a fazer lembrar as grandes capitais, mas rapidamente me apercebi que este brilhante exterior escondia algo.

            Segui imóvel, contemplando este magnifico achado e o assombroso ar que todo o ambiente circundante e a ausência de luz no seu interior lhe conferiam. Por fim, o submarino chegou ao fim da linha e emergiu até me ser possível abandoná-lo, e assim fiz, começando assim a minha viagem.

            Deve ter durado horas, horas nas quais me cruzei com um imenso número de corpos decadentes e deformados, inúmeras publicidades e postos de venda de produtos que aparentemente manipulavam o código genético conferindo uma série de magnificas habilidades a quem os consumisse. Contudo, não vi nenhum exemplar. Depressa me deparei com cartazes de teor político, apelos a uma revolução e, claro, a outra face da moeda, a criação deste sítio como um lugar sem regras e sem limitações, como aquele pedaço de tecido anunciara. Olhando para o caos à minha volta, vi que tudo não passava de uma utopia perfeita, e uma vez que tal advém da vontade do ser humano, imperfeito por natureza, estava condenada a falhar desde o início. Não há qualquer outra forma gentil de o dizer. E perante esta realização, vi o nevoeiro a aproximar-se uma vez mais, cercando-me, e aproveitando-se da minha impotência, envolvendo-me uma vez mais.

            Senti vento a soprar nos meus cabelos. Aliás, senti-me a voar, e ao abrir os olhos, reparei que não estava a voar, mas sim a cair. Pânico apoderou-se de mim naquele que seria certamente o meu último momento, até que me senti a ser arremessado. O impacto não me permitiu ver o que era. Só me recordo de um vulto negro antes de ter embatido contra algo sólido. Sentindo-me em porto seguro, abri novamente os olhos e o que vi deixou-me boquiaberto. Uma nova cidade, desta vez no meio das nuvens, e ao contrário da anterior, cheia de vida… se calhar até demais. Por entre a confusão da multidão ouvi falar de um falso profeta que capturou uma criança milagre, uma rapariga, e que devia ser parado a qualquer custo. Fiquei completamente estarrecido perante as forças incumbidas desta missão, incluindo pessoas claramente debilitadas transformadas em estranhas e grotescas maquinações. No meio da confusão e dos confrontos pelo que parecia entre as autoridades e um grupo popular de revolta popular, vi ao longe um homem e uma rapariga a desaparecerem por um estranho portal. Perante tão estranho fenómeno não me apercebi da nova formação do nevoeiro, desta vez puxando-me, e assim que atravessei o chão, dei por mim novamente diante de um novo farol. Não, não novo, o mesmo… ou será que não?

            Olhando em volta vi outros mais, e diante das suas entradas, outros como eu, aliás, eu mesmo… ou será que não? Senti um sussurro, algo sobre constantes e variáveis, e o abrir da porta atrás de mim fê-lo dissipar-se. Entrei nela mais uma vez, novamente chamado pelo nevoeiro que agora dela brotava, e assim que se dissipou, vi-me novamente no bote, com o mesmo avião novamente prestes a despenhar-se.

            Novamente preso num ciclo infinito. Talvez algum dia o consiga quebrar.

            

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Elas Vivem

           Consegues vê-las? Lá fora. A ser trocadas constantemente face à actividade mundana com que se vão deparando. Eu consigo vê-las, tanto quando olho por uma janela como quando me encontro diante de um espelho. São um lembrete constante do quão desprezíveis nós conseguimos realmente ser. Não bastam as nossas tendências frias e egocêntricas nas quais não nos importamos de espezinhar terceiros só para no fim conseguirmos algo.

            O potencial para se ser algo mais continua presente, e possivelmente irá continuar a estar. Mas elas também continuam cá, e é imensamente triste ser necessário recorrer a elas. Mas uma vez mais, está na nossa natureza mascararmos os nossos defeitos e as nossas verdadeiras intenções

            Não posso dizer que sou uma excepção, nem faço tenções de o ser. Claro que também as tenho. E numa vasta colecção cuidadosamente trabalhada e organizada. Confesso que o segredo para a sua boa utilização consiste numa troca rápida e fluída o suficiente para que quaisquer verdadeiras intenções não sejam detectadas, e mesmo que o sejam, tal permite que a certeza seja trocada pela dúvida que mais tarde irá acabar por ser esquecida porque ninguém dá valor a este tipo de detalhes. Saber moldar a empatia de forma a fazê-la assumir e levar a cabo os nossos propósitos é também um outro pequeno grande pormenor que deve estar presente de forma a garantir o ponto anterior. Tudo o resto consiste somente na utilização de um rico discurso coerente.

            Consegues vê-las agora? Consegues vê-las diante de ti?


            Eu já admiti usar uma máscara. Falta saber se tu sabias sequer que elas existiam, se estás disposto a admitir que fazes o mesmo… ou se a máscara faz parte de ti ao ponto de não conseguires distingui-la da tua verdadeira face.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Os Anjos Cantam

             Matthew Ripper era um promissor pianista inserido no grupo sinfónico de Londres. Muitos defendiam a pés juntos que ele carregava todo o grupo e que certamente sem ele não valeria a pena atender a qualquer espectáculo. Os que tal defendiam, quando questionados, não conseguiam encontrar palavras no seu rico vocabulário que explicassem o que fazia deste pianista um artista tão distinto. Uns focavam-se na leveza com que tratava as teclas do seu estimado piano e as suas respectivas notas, que tão calorosamente retribuíam com um doce e delicado som. Outros alertavam para a sua postura, como se um maestro e um bailarino se tivessem juntado para dar lugar a uma indubitavelmente bela fluidez de elegantes movimentos, capazes de deter o mais distraído dos espectadores. Contudo, outros havia que encaravam como um insulto não referir a sua expressão enquanto a sua magia tinha lugar. Era estranhamente curioso observar a composição do seu rosto. A sua serenidade fazia lembrar um pintor a contemplar uma tela em branco enquanto procurava desmistificar o que procurava expor nela. Mas era também perceptível uma certa tristeza, como se aquilo que tirava do piano não fosse de forma alguma aquilo que procurava. Multidões deliravam com a sua recriação exacta de obras de Mozart, Chopin e Beethoven, mas tal não parecia satisfazer o pensativamente brilhante pianista.

            No fim de cada actuação, dirigia um tímido sorriso à plateia, e juntamente com os seus colegas abandonava o seu edifício, seguindo prontamente para o seu apartamento em Dorset Street. Aí o espectáculo continuava durante o que restava da noite. Contudo, ao contrário do que se poderia esperar, ninguém alguma vez apresentou queixa contra o senhor Ripper. O som que emanava do seu humilde rés-do-chão era divinal, aparentando mesmo ser o celestial cântico de uma série de anjos. Muitos dos seus vizinhos assolados por longos e medicados problemas de insónias viram-nos a serem resolvidos só por se exporem a tal bênção. Tanto quanto sabiam, só podiam agradecer ao senhor Ripper por tamanha oferenda.

            Por força disto, muitos pensavam que Matthew Ripper se encontrava a trabalhar num novo projecto, algo claramente novo e inovador, visto que ninguém aparentava saber que tipo de instrumento produzia tal som, e como a curiosidade é veloz entre os curiosos, mais que uma vez o questionavam sobre isso. Vanessa Scott foi uma dessas curiosas.

            Após terminar mais um concerto no Barbican, Matthew cruzou-se com uma esbelta mulher de longo cabelo negro e olhos cor de avelã:

            - Boa noite, senhor Ripper, perdoe-me a ousadia, mas há muito que acompanho o seu trabalho, e estes rumores… diga-me, está mesmo a trabalhar em algo novo?

            Esboçando um tímido sorriso, Matthew respondeu:

            - Como é que uma mulher tão bela poderia estar interessada nos pequenos projectos de um homem tão aborrecido?

            Vanessa soltou uma pequena risada. Tímida e bela, algo que Matthew captou e que deixou ecoar no interior da sua mente.

            - Ora, não acredito que “aborrecido” seja um adjectivo que lhe faça justiça – respondeu ela.

          - Talvez não o seja, mas, se quiser, terei todo o gosto em responder devidamente à sua pergunta durante um jantar. Conheço um lugar bastante simpático não muito longe daqui.

        - Um jantar? Mas – a surpresa deixou Vanessa mais que atrapalhada, mas era precisamente aquilo que queria – claro, como é que eu poderia recusar?

            Trocando sorrisos, Matthew deu-lhe o braço, e ela tomou-o.

            Le Café du March foi o destino, e dizer que foram bem recebidos está longe de descrever o quão calorosa foi realmente a recepção. O serviço foi apenas o melhor para este quase regular cliente. O Confit de Canard estava perfeito e o vinho, um Château-Branaire Ducru St-Julien Bordeaux de 1999, foi apenas a cereja no topo do bolo. Contudo, nada chegava aos calcanhares do ânimo presente à mesa. Sozinhos os dois falaram durante o jantar, com Matthew a satisfazer lenta e cautelosamente a insaciável curiosidade de Vanessa. Cada resposta levava a duas perguntas, e ela queria sempre saber mais. Felizmente para ela, Matthew estava disposto a esclarecê-la.

            - E que instrumento é esse que você tem em sua casa?

            - Porquê dizer-lhe quando posso mostrar-lhe? Se me permite a ousadia.

            O queixo caiu-lhe. Primeiro um jantar com Matthew Ripper e agora um convite para observar aquilo em que ele tão secretamente tem vindo a trabalhar?

            - Se insiste – sorriu – adoraria.

            Com o jantar terminado seguiram então em direcção ao humilde rés-do-chão do senhor Matthew Ripper, e humilde realmente era, podendo apontar-se apenas como luxos alguns móveis claramente italianos onde os vários prémios que ele tem vindo a receber repousavam em exposição, sendo tudo o resto o suficiente para qualquer um viver confortável.

            Chegando ao hall de entrada, ele abriu uma pequena porta debaixo do seu vão de escadas e acendeu a luz do seu interior.

            - O instrumento em questão é demasiado grande para o ter aqui em cima – disse – felizmente para mim, consegui arranjar um apartamento com um porão suficientemente espaçoso.

            Afastando-se, fez sinal a Vanessa para avançar, e ela assim o fez, descendo aquelas pequenas escadas naquele estreito corredor até parar diante de uma nova porta.

            - Esteja à vontade – disse ele.

            Ela assim fez, abrindo a porta e deixando a tímida luz que tinha atrás de si a iluminar parte do porão, parte essa que não permitia ver muito mais.

            A porta fechou-se atrás dela tal como a abriu, calmamente:

            - Senhor Matthew? – perguntou, virando-se na sua direcção.

            E como que por magia, as luzes acenderam-se. Tinha diante de si o mesmo Matthew Ripper com quem tinha jantado, embora pudesse notar algo de diferente nele. De qualquer das formas, na sua timidamente carismática forma de ser, fez-lhe sinal para olhar em frente.

            Sorrindo, ela assim fez, e então todo o seu delicado semblante se alterou. Os olhos alargaram-se em choque e o sorriso desvaneceu-se, contorcendo-se naquilo que poderia somente ser um grito. Nesse momento, sentiu-se a ser agarrada e sentiu algo suave a ser firmemente encostado contra o seu nariz e lábios. Procurou escapar, contorcendo-se o melhor que podia, mas a imagem clara que tinha diante de si e que no seu cérebro ficaria para sempre gravada começou a ficar desfocada e fraca, tal como o seu corpo.

            Com ela inconsciente nas suas mãos, Matthew tomou-a nos seus braços e levou-a até uma maca que tinha à sua esquerda. Pousou-a gentilmente, como se ela fosse de cristal e ficou a observá-la, afagando os seus sedosos cabelos e o seu pálido rosto. Tinha diante de si o que há tanto procurava e sabia o que tinha que fazer. Tomou um estranho instrumento que no mesmo sítio repousava. Abriu-o, e levantando ao de leve a cabeça de Vanessa, deixou-o no seu pescoço, mesmo ao nível dos ombros. Experiências anteriores ensinaram-no que tinha que ser ali. Tomou uma fina e afiada lâmina e instalou-a no estranho aparelho. Ao premir de um botão, a lâmina deixou-se levar pela gravidade e mergulhou, não descansado enquanto não tivesse chegado ao fim do seu destino, não se deixando abrandar por tecido nem osso. A cabeça de Vanessa estava solta e sangue jorrava da sua base, com a sua expressão inalterada. O sangue acabaria por parar e ela teria que ser limpa de forma a que não existissem excessos acumulados. Felizmente para ela, Matthew já tinha feito isto antes. Servindo-se de panos e de alguns produtos da sua criação, não tardou a levar o trabalho a bom porto e podia dizer que a Vanessa tinha agora um verdadeiro ar angelical. Faltava-lhe agora moldar o rosto, algo que tinha que fazer enquanto os produtos não secavam. Lembrou-se da sua risada e da expressão que fez quando a soltou. Replicou-a e felizmente para ele, era como se ela se estivesse a rir outra vez. Sorrindo, tomou-a nos seus braços, e seguiu para o fundo do porão.


            Tomou a pequena escada que ali deixara e encostando-a, subiu até chegar ao topo de um imenso tubo de estanho. Fazendo os devidos ajustes, colocou a cabeça de Vanessa no seu topo, e após se certificar de que nada a tiraria dali, parou para contemplar a sequência que tinha diante de si. Desceu a escada e devolveu-a ao seu sítio. Avançou até à dianteira do seu instrumento e sentou-se. Uma combinação de pernas e troncos dava, sem sombra de dúvida, um confortável banco. Deixou dançar os seus dedos no ar enquanto os aproximava de outros tantos, já pálidos e frios. Pisou delicadamente o pé que tinha diante de si e deixou os foles prepararem-se. Experimentou o tom de Vanessa, e não podia estar mais satisfeito. Tomou os outros dedos e várias sonoridades se formaram. Foi experimentando, e quando se cruzou com uma progressão que lhe agradou, aí então começou. Uma leve e suave introdução teve lugar, rapidamente acelerando, mas não demasiado. Os graves e agudos ecoavam na mais perfeita das harmonias, e a progressão continuava alegremente. Surgiram alguns dramáticos turbilhões, os conflitos nesta peça, que viriam a ser superados com uma sonoridade rápida e eficaz. Retomando o tom inicial, foi seguindo, até que um novo crescendo se preparava. Depois dele, ainda mais alto, o clímax surgiu, e aí sim, o tímido pianista sorria perante a sua obra, obra esta que surgia da perfeita harmonia da sua habilidade e do tom natural da Anna, da Michelle, da Mónica, da Stephanie, da Agatha, da Tyra, da Anastasia e de tantas outras. Mas claro que não se podia esquecer da preciosa Vanessa, a preciosa peça que tanta falta lhe tem feito e que agora incomensurável alegria lhe trazia. Ele, o artista, e elas os anjos que através dele e para ele cantam.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Devaneios Existenciais

             A complexidade da mente humana é apenas ultrapassada pela insistência que muitos têm em não fazer uso dela. Seja por incompetência ou simplesmente preguiça, a verdade é que tamanha estrutura já viu melhores dias. Contudo, apesar do seu colossal potencial, é preciso cautela quando se chega a altura de a usar.

            É nela que guardamos todas as memórias e experiências que vão acabando por preencher as nossas vidas, mas elas não precisam necessariamente de ser um estímulo externo, muito pelo contrário. Podem muito bem ser criadas por nós e manipuladas conforme acharmos melhor. Da mesma maneira que acreditamos numa mentira alheia (simplesmente pelo facto de não usufruirmos da nossa própria complexidade para aferir a sua verdadeira natureza), podemos muito bem, e de forma muito mais fácil, acreditar numa por nós elaborada. Mas se formos mais longe, e depositarmos nela o tempo, a convicção e a atenção necessários, ela irá eventualmente tornar-se numa verdade, verdade essa que acabará por amadurecer e se tornar num acontecimento real que como tantos outros marcou a nossa existência.

            Mas não podemos somente criar, pois tal não faria dela complexa mas sim simples como os demais. Destruir, suprimir, obliterar são também opções também bastante apelativas. Face a um determinado evento que ficou devidamente registado, caso ele, ou algo que dele proveio, não nos agrade, podemos simplesmente fazer por esquecê-lo, e tal como no caso anterior, se devidamente tratado pode acabar por ser uma memória distante, ou até mesmo uma inconsistência, uma incoerência, um facto estranho. Depois de tanto trabalho para esquecer tal coisa, era só o que faltava que nos dissesse algo! Uma vez mais, seria algo demasiado simples para algo com tamanha complexidade.

            Em suma, tal complexidade faz de nós senhores da nossa própria realidade, e uma vez mais, é um tanto ou quanto incrível, pelas piores das razões claro, que haja cada vez mais gente a abdicar de tamanha capacidade. Contudo, não será demais dizer que não estamos perante nenhum brinquedo, pois as consequências são igualmente complexas (quer queiram quer não). Temos a capacidade de manipular a nossa própria realidade, sim, mas se tal não feito com a maior das precauções, estamos condenados a perdermo-nos nela, e a destruirmo-nos no processo.

             É sem dúvida algo simplesmente complexo.

Especial

        Era um dia como outro qualquer quando ela recebeu aquela carta. Um envelope simples, tal como o papel onde uma calma caligrafia lhe dizia o seguinte:

            Não há um dia que passe em que eu não sinta a tua falta. Os meus dias são inundados pelos momentos que passámos e resta-me somente esperar que muitos mais nos esperem. Irei regressar em breve, e espero encontrar-te no mesmo lugar de sempre.

Para sempre teu,

Tu sabes quem.

            E realmente ela sabia quem era. Sabia quem e o que sentia. E sabia também que há muito que não falavam. O monótono dia subitamente ganhou cor e o seu brilho estava claramente presente nela. Sem hesitar, dirigiu-se ao sítio em questão. Partilharam vários momentos em vários lugares, sim, mas havia só um que era verdadeiramente especial. Lá chegou, e nada viu. Ele não estava em lado algum, e ela então esperou. O brilho tremeu, mas a esperança levou-a a visitar aquele mesmo lugar diariamente. Infelizmente, o resultado não parecia mudar.

          O tempo foi passando, tal como se é esperado, e a sua vontade continuava inamovível. Contudo, não duraria para sempre. Com ela partiu, e neste momento de plena tristeza envolto na ideia de que nunca o voltaria a ver no seu lugar especial, ele se revelou diante dela, e lhe disse que o lugar era ela.