Matthew Ripper era um
promissor pianista inserido no grupo sinfónico de Londres. Muitos defendiam a
pés juntos que ele carregava todo o grupo e que certamente sem ele não valeria
a pena atender a qualquer espectáculo. Os que tal defendiam, quando questionados,
não conseguiam encontrar palavras no seu rico vocabulário que explicassem o que
fazia deste pianista um artista tão distinto. Uns focavam-se na leveza com que
tratava as teclas do seu estimado piano e as suas respectivas notas, que tão
calorosamente retribuíam com um doce e delicado som. Outros alertavam para a
sua postura, como se um maestro e um bailarino se tivessem juntado para dar
lugar a uma indubitavelmente bela fluidez de elegantes movimentos, capazes de
deter o mais distraído dos espectadores. Contudo, outros havia que encaravam
como um insulto não referir a sua expressão enquanto a sua magia tinha lugar.
Era estranhamente curioso observar a composição do seu rosto. A sua serenidade
fazia lembrar um pintor a contemplar uma tela em branco enquanto procurava
desmistificar o que procurava expor nela. Mas era também perceptível uma certa
tristeza, como se aquilo que tirava do piano não fosse de forma alguma aquilo
que procurava. Multidões deliravam com a sua recriação exacta de obras de
Mozart, Chopin e Beethoven, mas tal não parecia satisfazer o pensativamente
brilhante pianista.
No fim de cada actuação, dirigia um tímido sorriso à
plateia, e juntamente com os seus colegas abandonava o seu edifício, seguindo
prontamente para o seu apartamento em Dorset Street. Aí o espectáculo
continuava durante o que restava da noite. Contudo, ao contrário do que se
poderia esperar, ninguém alguma vez apresentou queixa contra o senhor Ripper. O
som que emanava do seu humilde rés-do-chão era divinal, aparentando mesmo ser o
celestial cântico de uma série de anjos. Muitos dos seus vizinhos assolados por
longos e medicados problemas de insónias viram-nos a serem resolvidos só por se
exporem a tal bênção. Tanto quanto sabiam, só podiam agradecer ao senhor Ripper
por tamanha oferenda.
Por força disto, muitos pensavam que Matthew Ripper se
encontrava a trabalhar num novo projecto, algo claramente novo e inovador,
visto que ninguém aparentava saber que tipo de instrumento produzia tal som, e
como a curiosidade é veloz entre os curiosos, mais que uma vez o questionavam
sobre isso. Vanessa Scott foi uma dessas curiosas.
Após terminar mais um concerto no Barbican, Matthew cruzou-se com uma esbelta mulher de longo cabelo
negro e olhos cor de avelã:
- Boa noite, senhor Ripper, perdoe-me a ousadia, mas há
muito que acompanho o seu trabalho, e estes rumores… diga-me, está mesmo a
trabalhar em algo novo?
Esboçando um tímido sorriso, Matthew respondeu:
- Como é que uma mulher tão bela poderia estar
interessada nos pequenos projectos de um homem tão aborrecido?
Vanessa soltou uma pequena risada. Tímida e bela, algo
que Matthew captou e que deixou ecoar no interior da sua mente.
- Ora, não acredito que “aborrecido” seja um adjectivo
que lhe faça justiça – respondeu ela.
- Talvez não o seja, mas, se quiser, terei todo o gosto
em responder devidamente à sua pergunta durante um jantar. Conheço um lugar
bastante simpático não muito longe daqui.
- Um jantar? Mas – a surpresa deixou Vanessa mais que
atrapalhada, mas era precisamente aquilo que queria – claro, como é que eu
poderia recusar?
Trocando sorrisos, Matthew deu-lhe o braço, e ela
tomou-o.
Le Café du March foi
o destino, e dizer que foram bem recebidos está longe de descrever o quão
calorosa foi realmente a recepção. O serviço foi apenas o melhor para este
quase regular cliente. O Confit de Canard
estava perfeito e o vinho, um Château-Branaire Ducru St-Julien Bordeaux de 1999, foi apenas a cereja no topo do bolo. Contudo, nada
chegava aos calcanhares do ânimo presente à mesa. Sozinhos os dois falaram
durante o jantar, com Matthew a satisfazer lenta e cautelosamente a insaciável curiosidade
de Vanessa. Cada resposta levava a duas perguntas, e ela queria sempre saber
mais. Felizmente para ela, Matthew estava disposto a esclarecê-la.
- E que instrumento é esse que você tem em sua casa?
- Porquê dizer-lhe quando posso mostrar-lhe? Se me
permite a ousadia.
O queixo caiu-lhe. Primeiro um jantar com Matthew Ripper
e agora um convite para observar aquilo em que ele tão secretamente tem vindo a
trabalhar?
- Se insiste – sorriu – adoraria.
Com o jantar terminado seguiram então em direcção ao
humilde rés-do-chão do senhor Matthew Ripper, e humilde realmente era, podendo
apontar-se apenas como luxos alguns móveis claramente italianos onde os vários
prémios que ele tem vindo a receber repousavam em exposição, sendo tudo o resto
o suficiente para qualquer um viver confortável.
Chegando ao hall de
entrada, ele abriu uma pequena porta debaixo do seu vão de escadas e acendeu a
luz do seu interior.
- O instrumento em questão é demasiado grande para o ter
aqui em cima – disse – felizmente para mim, consegui arranjar um apartamento
com um porão suficientemente espaçoso.
Afastando-se, fez sinal a Vanessa para avançar, e ela
assim o fez, descendo aquelas pequenas escadas naquele estreito corredor até
parar diante de uma nova porta.
- Esteja à vontade – disse ele.
Ela assim fez, abrindo a porta e deixando a tímida luz
que tinha atrás de si a iluminar parte do porão, parte essa que não permitia
ver muito mais.
A porta fechou-se atrás dela tal como a abriu,
calmamente:
- Senhor Matthew? – perguntou, virando-se na sua
direcção.
E como que por magia, as luzes acenderam-se. Tinha diante
de si o mesmo Matthew Ripper com quem tinha jantado, embora pudesse notar algo
de diferente nele. De qualquer das formas, na sua timidamente carismática forma
de ser, fez-lhe sinal para olhar em frente.
Sorrindo, ela assim fez, e então todo o seu delicado
semblante se alterou. Os olhos alargaram-se em choque e o sorriso
desvaneceu-se, contorcendo-se naquilo que poderia somente ser um grito. Nesse
momento, sentiu-se a ser agarrada e sentiu algo suave a ser firmemente
encostado contra o seu nariz e lábios. Procurou escapar, contorcendo-se o
melhor que podia, mas a imagem clara que tinha diante de si e que no seu
cérebro ficaria para sempre gravada começou a ficar desfocada e fraca, tal como
o seu corpo.
Com ela inconsciente nas suas mãos, Matthew tomou-a nos
seus braços e levou-a até uma maca que tinha à sua esquerda. Pousou-a
gentilmente, como se ela fosse de cristal e ficou a observá-la, afagando os
seus sedosos cabelos e o seu pálido rosto. Tinha diante de si o que há tanto
procurava e sabia o que tinha que fazer. Tomou um estranho instrumento que no
mesmo sítio repousava. Abriu-o, e levantando ao de leve a cabeça de Vanessa, deixou-o
no seu pescoço, mesmo ao nível dos ombros. Experiências anteriores ensinaram-no
que tinha que ser ali. Tomou uma fina e afiada lâmina e instalou-a no estranho
aparelho. Ao premir de um botão, a lâmina deixou-se levar pela gravidade e
mergulhou, não descansado enquanto não tivesse chegado ao fim do seu destino,
não se deixando abrandar por tecido nem osso. A cabeça de Vanessa estava solta
e sangue jorrava da sua base, com a sua expressão inalterada. O sangue acabaria
por parar e ela teria que ser limpa de forma a que não existissem excessos
acumulados. Felizmente para ela, Matthew já tinha feito isto antes. Servindo-se
de panos e de alguns produtos da sua criação, não tardou a levar o trabalho a
bom porto e podia dizer que a Vanessa tinha agora um verdadeiro ar angelical.
Faltava-lhe agora moldar o rosto, algo que tinha que fazer enquanto os produtos
não secavam. Lembrou-se da sua risada e da expressão que fez quando a soltou.
Replicou-a e felizmente para ele, era como se ela se estivesse a rir outra vez.
Sorrindo, tomou-a nos seus braços, e seguiu para o fundo do porão.
Tomou a pequena escada que ali deixara e encostando-a,
subiu até chegar ao topo de um imenso tubo de estanho. Fazendo os devidos
ajustes, colocou a cabeça de Vanessa no seu topo, e após se certificar de que
nada a tiraria dali, parou para contemplar a sequência que tinha diante de si.
Desceu a escada e devolveu-a ao seu sítio. Avançou até à dianteira do seu
instrumento e sentou-se. Uma combinação de pernas e troncos dava, sem sombra de
dúvida, um confortável banco. Deixou dançar os seus dedos no ar enquanto os
aproximava de outros tantos, já pálidos e frios. Pisou delicadamente o pé que
tinha diante de si e deixou os foles prepararem-se. Experimentou o tom de
Vanessa, e não podia estar mais satisfeito. Tomou os outros dedos e várias
sonoridades se formaram. Foi experimentando, e quando se cruzou com uma
progressão que lhe agradou, aí então começou. Uma leve e suave introdução teve
lugar, rapidamente acelerando, mas não demasiado. Os graves e agudos ecoavam
na mais perfeita das harmonias, e a progressão continuava alegremente. Surgiram
alguns dramáticos turbilhões, os conflitos nesta peça, que viriam a ser
superados com uma sonoridade rápida e eficaz. Retomando o tom inicial, foi
seguindo, até que um novo crescendo
se preparava. Depois dele, ainda mais alto, o clímax surgiu, e aí sim, o tímido
pianista sorria perante a sua obra, obra esta que surgia da perfeita harmonia
da sua habilidade e do tom natural da Anna, da Michelle, da Mónica, da
Stephanie, da Agatha, da Tyra, da Anastasia e de tantas outras. Mas claro que
não se podia esquecer da preciosa Vanessa, a preciosa peça que tanta falta lhe
tem feito e que agora incomensurável alegria lhe trazia. Ele, o artista, e elas
os anjos que através dele e para ele cantam.