sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Os Anjos Cantam

             Matthew Ripper era um promissor pianista inserido no grupo sinfónico de Londres. Muitos defendiam a pés juntos que ele carregava todo o grupo e que certamente sem ele não valeria a pena atender a qualquer espectáculo. Os que tal defendiam, quando questionados, não conseguiam encontrar palavras no seu rico vocabulário que explicassem o que fazia deste pianista um artista tão distinto. Uns focavam-se na leveza com que tratava as teclas do seu estimado piano e as suas respectivas notas, que tão calorosamente retribuíam com um doce e delicado som. Outros alertavam para a sua postura, como se um maestro e um bailarino se tivessem juntado para dar lugar a uma indubitavelmente bela fluidez de elegantes movimentos, capazes de deter o mais distraído dos espectadores. Contudo, outros havia que encaravam como um insulto não referir a sua expressão enquanto a sua magia tinha lugar. Era estranhamente curioso observar a composição do seu rosto. A sua serenidade fazia lembrar um pintor a contemplar uma tela em branco enquanto procurava desmistificar o que procurava expor nela. Mas era também perceptível uma certa tristeza, como se aquilo que tirava do piano não fosse de forma alguma aquilo que procurava. Multidões deliravam com a sua recriação exacta de obras de Mozart, Chopin e Beethoven, mas tal não parecia satisfazer o pensativamente brilhante pianista.

            No fim de cada actuação, dirigia um tímido sorriso à plateia, e juntamente com os seus colegas abandonava o seu edifício, seguindo prontamente para o seu apartamento em Dorset Street. Aí o espectáculo continuava durante o que restava da noite. Contudo, ao contrário do que se poderia esperar, ninguém alguma vez apresentou queixa contra o senhor Ripper. O som que emanava do seu humilde rés-do-chão era divinal, aparentando mesmo ser o celestial cântico de uma série de anjos. Muitos dos seus vizinhos assolados por longos e medicados problemas de insónias viram-nos a serem resolvidos só por se exporem a tal bênção. Tanto quanto sabiam, só podiam agradecer ao senhor Ripper por tamanha oferenda.

            Por força disto, muitos pensavam que Matthew Ripper se encontrava a trabalhar num novo projecto, algo claramente novo e inovador, visto que ninguém aparentava saber que tipo de instrumento produzia tal som, e como a curiosidade é veloz entre os curiosos, mais que uma vez o questionavam sobre isso. Vanessa Scott foi uma dessas curiosas.

            Após terminar mais um concerto no Barbican, Matthew cruzou-se com uma esbelta mulher de longo cabelo negro e olhos cor de avelã:

            - Boa noite, senhor Ripper, perdoe-me a ousadia, mas há muito que acompanho o seu trabalho, e estes rumores… diga-me, está mesmo a trabalhar em algo novo?

            Esboçando um tímido sorriso, Matthew respondeu:

            - Como é que uma mulher tão bela poderia estar interessada nos pequenos projectos de um homem tão aborrecido?

            Vanessa soltou uma pequena risada. Tímida e bela, algo que Matthew captou e que deixou ecoar no interior da sua mente.

            - Ora, não acredito que “aborrecido” seja um adjectivo que lhe faça justiça – respondeu ela.

          - Talvez não o seja, mas, se quiser, terei todo o gosto em responder devidamente à sua pergunta durante um jantar. Conheço um lugar bastante simpático não muito longe daqui.

        - Um jantar? Mas – a surpresa deixou Vanessa mais que atrapalhada, mas era precisamente aquilo que queria – claro, como é que eu poderia recusar?

            Trocando sorrisos, Matthew deu-lhe o braço, e ela tomou-o.

            Le Café du March foi o destino, e dizer que foram bem recebidos está longe de descrever o quão calorosa foi realmente a recepção. O serviço foi apenas o melhor para este quase regular cliente. O Confit de Canard estava perfeito e o vinho, um Château-Branaire Ducru St-Julien Bordeaux de 1999, foi apenas a cereja no topo do bolo. Contudo, nada chegava aos calcanhares do ânimo presente à mesa. Sozinhos os dois falaram durante o jantar, com Matthew a satisfazer lenta e cautelosamente a insaciável curiosidade de Vanessa. Cada resposta levava a duas perguntas, e ela queria sempre saber mais. Felizmente para ela, Matthew estava disposto a esclarecê-la.

            - E que instrumento é esse que você tem em sua casa?

            - Porquê dizer-lhe quando posso mostrar-lhe? Se me permite a ousadia.

            O queixo caiu-lhe. Primeiro um jantar com Matthew Ripper e agora um convite para observar aquilo em que ele tão secretamente tem vindo a trabalhar?

            - Se insiste – sorriu – adoraria.

            Com o jantar terminado seguiram então em direcção ao humilde rés-do-chão do senhor Matthew Ripper, e humilde realmente era, podendo apontar-se apenas como luxos alguns móveis claramente italianos onde os vários prémios que ele tem vindo a receber repousavam em exposição, sendo tudo o resto o suficiente para qualquer um viver confortável.

            Chegando ao hall de entrada, ele abriu uma pequena porta debaixo do seu vão de escadas e acendeu a luz do seu interior.

            - O instrumento em questão é demasiado grande para o ter aqui em cima – disse – felizmente para mim, consegui arranjar um apartamento com um porão suficientemente espaçoso.

            Afastando-se, fez sinal a Vanessa para avançar, e ela assim o fez, descendo aquelas pequenas escadas naquele estreito corredor até parar diante de uma nova porta.

            - Esteja à vontade – disse ele.

            Ela assim fez, abrindo a porta e deixando a tímida luz que tinha atrás de si a iluminar parte do porão, parte essa que não permitia ver muito mais.

            A porta fechou-se atrás dela tal como a abriu, calmamente:

            - Senhor Matthew? – perguntou, virando-se na sua direcção.

            E como que por magia, as luzes acenderam-se. Tinha diante de si o mesmo Matthew Ripper com quem tinha jantado, embora pudesse notar algo de diferente nele. De qualquer das formas, na sua timidamente carismática forma de ser, fez-lhe sinal para olhar em frente.

            Sorrindo, ela assim fez, e então todo o seu delicado semblante se alterou. Os olhos alargaram-se em choque e o sorriso desvaneceu-se, contorcendo-se naquilo que poderia somente ser um grito. Nesse momento, sentiu-se a ser agarrada e sentiu algo suave a ser firmemente encostado contra o seu nariz e lábios. Procurou escapar, contorcendo-se o melhor que podia, mas a imagem clara que tinha diante de si e que no seu cérebro ficaria para sempre gravada começou a ficar desfocada e fraca, tal como o seu corpo.

            Com ela inconsciente nas suas mãos, Matthew tomou-a nos seus braços e levou-a até uma maca que tinha à sua esquerda. Pousou-a gentilmente, como se ela fosse de cristal e ficou a observá-la, afagando os seus sedosos cabelos e o seu pálido rosto. Tinha diante de si o que há tanto procurava e sabia o que tinha que fazer. Tomou um estranho instrumento que no mesmo sítio repousava. Abriu-o, e levantando ao de leve a cabeça de Vanessa, deixou-o no seu pescoço, mesmo ao nível dos ombros. Experiências anteriores ensinaram-no que tinha que ser ali. Tomou uma fina e afiada lâmina e instalou-a no estranho aparelho. Ao premir de um botão, a lâmina deixou-se levar pela gravidade e mergulhou, não descansado enquanto não tivesse chegado ao fim do seu destino, não se deixando abrandar por tecido nem osso. A cabeça de Vanessa estava solta e sangue jorrava da sua base, com a sua expressão inalterada. O sangue acabaria por parar e ela teria que ser limpa de forma a que não existissem excessos acumulados. Felizmente para ela, Matthew já tinha feito isto antes. Servindo-se de panos e de alguns produtos da sua criação, não tardou a levar o trabalho a bom porto e podia dizer que a Vanessa tinha agora um verdadeiro ar angelical. Faltava-lhe agora moldar o rosto, algo que tinha que fazer enquanto os produtos não secavam. Lembrou-se da sua risada e da expressão que fez quando a soltou. Replicou-a e felizmente para ele, era como se ela se estivesse a rir outra vez. Sorrindo, tomou-a nos seus braços, e seguiu para o fundo do porão.


            Tomou a pequena escada que ali deixara e encostando-a, subiu até chegar ao topo de um imenso tubo de estanho. Fazendo os devidos ajustes, colocou a cabeça de Vanessa no seu topo, e após se certificar de que nada a tiraria dali, parou para contemplar a sequência que tinha diante de si. Desceu a escada e devolveu-a ao seu sítio. Avançou até à dianteira do seu instrumento e sentou-se. Uma combinação de pernas e troncos dava, sem sombra de dúvida, um confortável banco. Deixou dançar os seus dedos no ar enquanto os aproximava de outros tantos, já pálidos e frios. Pisou delicadamente o pé que tinha diante de si e deixou os foles prepararem-se. Experimentou o tom de Vanessa, e não podia estar mais satisfeito. Tomou os outros dedos e várias sonoridades se formaram. Foi experimentando, e quando se cruzou com uma progressão que lhe agradou, aí então começou. Uma leve e suave introdução teve lugar, rapidamente acelerando, mas não demasiado. Os graves e agudos ecoavam na mais perfeita das harmonias, e a progressão continuava alegremente. Surgiram alguns dramáticos turbilhões, os conflitos nesta peça, que viriam a ser superados com uma sonoridade rápida e eficaz. Retomando o tom inicial, foi seguindo, até que um novo crescendo se preparava. Depois dele, ainda mais alto, o clímax surgiu, e aí sim, o tímido pianista sorria perante a sua obra, obra esta que surgia da perfeita harmonia da sua habilidade e do tom natural da Anna, da Michelle, da Mónica, da Stephanie, da Agatha, da Tyra, da Anastasia e de tantas outras. Mas claro que não se podia esquecer da preciosa Vanessa, a preciosa peça que tanta falta lhe tem feito e que agora incomensurável alegria lhe trazia. Ele, o artista, e elas os anjos que através dele e para ele cantam.

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