A noite já ia alta, e ele
continuava nos seus aposentos a contemplar um mapa gasto que tinha estendido
sobre a secretária, iluminado por uma tímida vela e reconfortado pela brisa
fresca que passava por uma janela entreaberta.
Revia os planos na sua cabeça, quem iria fazer o quê e
quando. Já tinha perdido a conta à quantidade de vezes que analisara todos os
pormenores, e no fim chegava sempre à mesma conclusão: estava tudo pronto.
Sentando-se à secretária, prostrou-se sobre a mesa, sem
nunca quebrar contacto visual com o plano que muito tempo lhe consumira, a chave para trazer a mudança e consequente esperança que o país tanto
precisava. O seu queixo ficou suportado pelo seu punho fechado, e ao fim de
poucos segundos começou a sentir os olhos a pesar, a querer desfrutar de um
descanso merecido.
Mesmo antes de perder a sua consciência, sentiu as tábuas
do soalho a ranger, e levantando-se num salto, de pistola em riste, viu-a a
aproximar-se:
- Calma, sou só eu – disse ela, com as mãos no ar e um
sorriso nos lábios.
- Desculpa – continuou ele, devolvendo a arma ao seu
coldre – apanhaste-me de surpresa.
- É uma forma engraçada de dizer que te apanhei a dar o
dia por terminado.
- Sim, é verdade – sorriu ele – chegámos tão longe que é
quase difícil de acreditar.
- Mas não impossível – ela já estava diante de
secretária, olhando de relance para o mapa cuidadosamente marcado – amanhã tudo
começa e tudo acaba.
- Esperemos que sim. Já estudei o plano de uma ponta à
outra e tratei de atirar todos os problemas que me passaram pela cabeça contra
ele. Se cada um fizer o seu trabalho, seremos à prova de bala.
- É sempre reconfortante ouvir isso.
- E os outros, como estão?
- Estavam a acabar de arrumar as coisas e iam começar a
deitar-se.
- Óptimo, precisamos todos de estar frescos.
- E isso inclui-te a ti, correcto? – um sorriso
voltou-lhe aos lábios.
- Sim, calculo que sim.
Os dois trocaram olhares, deixando-se envolver num longo
momento de silêncio.
- Bem – disse ela, batendo ao de leve na mesa – vai descansar
que eu vou tratar de fazer o mesmo. Vemo-nos amanhã com o raiar de um novo dia.
- Vemo-nos amanhã.
Com as despedidas feitas, ela retirou-se, voltando a
descer as escadas de onde apareceu. Ele olhou novamente para o mapa, e soltando
um suspiro levantou-se enquanto se preparava para avançar na direcção do seu
quarto.
O chão rangia levemente a cada passo, algo a que tanto
ele como os restantes já estavam mais que habituados, e assim que a sua mão
tomou a maçaneta de cobre, ouviu uma pequena explosão vinda do andar debaixo,
seguida de algo a cair violentamente no chão. Não tinha dúvidas de que se
tratara do disparo de uma arma. Outros tantos se seguiram, e começaram a ser
perceptíveis passos pesados e apreçados mesmo por baixo dele.
Ouviu-os a subir as escadas. Tentou contá-los pelos
passos, mas eram simplesmente demasiados. Com o pior já enraizado, tomou a sua
pistola e encostou-se atrás da mesa. Viu os primeiros a saírem das escadas e
abrandar a sua marcha com armas em riste. Tinha apenas alguns segundos até ser
descoberto, e nesse curto período de tempo rapidamente se apercebeu que não
tinha munições suficientes.
Inspirando fundo, e sem fazer barulho algum, levantou-se
do seu esconderijo e deu os primeiros disparos, tomando as primeiras vidas. O
fogo foi retribuído, mas longe de acertar no alvo dada a surpresa que caíra
sobre eles. Ainda assim, aproveitando a cobertura das escadas, um conseguiu
acertar, perfurando-lhe uma perna, e atirando-o rapidamente ao chão.
Gritando de dor ao mesmo tempo que o seu sangue começava
a abandonar o seu corpo, ainda tratou de procurar alguma forma de retribuição,
mas a sua visão turva e lacrimejante não lhe permitiu uma percepção clara.
Rapidamente ficou sem munições.
Derrotado, e ciente do que iria acontecer, fechou os
olhos e tomou o medalhão que escondia no interior da camisa. Sentiu um cano de
aço quente a ser encostado à sua testa, e a última coisa que ouviu foi um novo disparo.
Todo o tumulto foi mais que suficiente para acordar a vizinhança. Poucos eram os que se atreviam a aproximar-se das janelas para ver
o que se passava enquanto balas iam sendo trocadas, mas assim que o
desconfortável silêncio se fez sentir, todos trataram de observar o que tinha
acabado de acontecer.
Viram os corpos a ser levados, cada um deles espelhando
expressões de desolação e desilusão, confinados ao destino cruel de apodrecerem
numa qualquer vala comum enquanto a História iria, aos poucos, tratar de os
esquecer.
Todos viram o sangue que começava a escorrer lentamente
pelas ruas, como se ele próprio se sentisse derrotado. Todos sabiam porque é
que aquilo aconteceu, e naquele momento todos concordaram que não podia ficar
assim.
Saíram às ruas tendo como armas o que quer que
conseguissem segurar e a crença numa causa que jamais estaria perdida. Não
agora. Os seus números eram demais para os atacantes, e estes foram forçados a
sair em retirada, não sem sofrer baixas.
Avançaram em direcção à sede máxima do poder local,
entoando cânticos onde imortalizavam aqueles que por eles e pela sua liberdade
lutaram e perderam a vida.
Nessa mesma noite, nessa mesma manhã, aqueles que
espezinhavam os fracos e que os exploravam, foram amargamente lembrados de que
enquanto uma vida pode ser tomada, uma ideia jamais poderá ser destruída, e
uma ideia que move multidões é um adversário que simplesmente não pode ser
parado.