domingo, 17 de junho de 2018

O Poder de uma Ideia


             A noite já ia alta, e ele continuava nos seus aposentos a contemplar um mapa gasto que tinha estendido sobre a secretária, iluminado por uma tímida vela e reconfortado pela brisa fresca que passava por uma janela entreaberta.

            Revia os planos na sua cabeça, quem iria fazer o quê e quando. Já tinha perdido a conta à quantidade de vezes que analisara todos os pormenores, e no fim chegava sempre à mesma conclusão: estava tudo pronto.

            Sentando-se à secretária, prostrou-se sobre a mesa, sem nunca quebrar contacto visual com o plano que muito tempo lhe consumira, a chave para trazer a mudança e consequente esperança que o país tanto precisava. O seu queixo ficou suportado pelo seu punho fechado, e ao fim de poucos segundos começou a sentir os olhos a pesar, a querer desfrutar de um descanso merecido.

            Mesmo antes de perder a sua consciência, sentiu as tábuas do soalho a ranger, e levantando-se num salto, de pistola em riste, viu-a a aproximar-se:

            - Calma, sou só eu – disse ela, com as mãos no ar e um sorriso nos lábios.

            - Desculpa – continuou ele, devolvendo a arma ao seu coldre – apanhaste-me de surpresa.

            - É uma forma engraçada de dizer que te apanhei a dar o dia por terminado.

            - Sim, é verdade – sorriu ele – chegámos tão longe que é quase difícil de acreditar.

            - Mas não impossível – ela já estava diante de secretária, olhando de relance para o mapa cuidadosamente marcado – amanhã tudo começa e tudo acaba.

            - Esperemos que sim. Já estudei o plano de uma ponta à outra e tratei de atirar todos os problemas que me passaram pela cabeça contra ele. Se cada um fizer o seu trabalho, seremos à prova de bala.

            - É sempre reconfortante ouvir isso.

            - E os outros, como estão?

            - Estavam a acabar de arrumar as coisas e iam começar a deitar-se.

            - Óptimo, precisamos todos de estar frescos.

            - E isso inclui-te a ti, correcto? – um sorriso voltou-lhe aos lábios.

            - Sim, calculo que sim.

            Os dois trocaram olhares, deixando-se envolver num longo momento de silêncio.

            - Bem – disse ela, batendo ao de leve na mesa – vai descansar que eu vou tratar de fazer o mesmo. Vemo-nos amanhã com o raiar de um novo dia.

            - Vemo-nos amanhã.

            Com as despedidas feitas, ela retirou-se, voltando a descer as escadas de onde apareceu. Ele olhou novamente para o mapa, e soltando um suspiro levantou-se enquanto se preparava para avançar na direcção do seu quarto.

            O chão rangia levemente a cada passo, algo a que tanto ele como os restantes já estavam mais que habituados, e assim que a sua mão tomou a maçaneta de cobre, ouviu uma pequena explosão vinda do andar debaixo, seguida de algo a cair violentamente no chão. Não tinha dúvidas de que se tratara do disparo de uma arma. Outros tantos se seguiram, e começaram a ser perceptíveis passos pesados e apreçados mesmo por baixo dele.

            Ouviu-os a subir as escadas. Tentou contá-los pelos passos, mas eram simplesmente demasiados. Com o pior já enraizado, tomou a sua pistola e encostou-se atrás da mesa. Viu os primeiros a saírem das escadas e abrandar a sua marcha com armas em riste. Tinha apenas alguns segundos até ser descoberto, e nesse curto período de tempo rapidamente se apercebeu que não tinha munições suficientes.

            Inspirando fundo, e sem fazer barulho algum, levantou-se do seu esconderijo e deu os primeiros disparos, tomando as primeiras vidas. O fogo foi retribuído, mas longe de acertar no alvo dada a surpresa que caíra sobre eles. Ainda assim, aproveitando a cobertura das escadas, um conseguiu acertar, perfurando-lhe uma perna, e atirando-o rapidamente ao chão.

            Gritando de dor ao mesmo tempo que o seu sangue começava a abandonar o seu corpo, ainda tratou de procurar alguma forma de retribuição, mas a sua visão turva e lacrimejante não lhe permitiu uma percepção clara. Rapidamente ficou sem munições.

            Derrotado, e ciente do que iria acontecer, fechou os olhos e tomou o medalhão que escondia no interior da camisa. Sentiu um cano de aço quente a ser encostado à sua testa, e a última coisa que ouviu foi um novo disparo.

            Todo o tumulto foi mais que suficiente para acordar a vizinhança. Poucos eram os que se atreviam a aproximar-se das janelas para ver o que se passava enquanto balas iam sendo trocadas, mas assim que o desconfortável silêncio se fez sentir, todos trataram de observar o que tinha acabado de acontecer.

            Viram os corpos a ser levados, cada um deles espelhando expressões de desolação e desilusão, confinados ao destino cruel de apodrecerem numa qualquer vala comum enquanto a História iria, aos poucos, tratar de os esquecer.

            Todos viram o sangue que começava a escorrer lentamente pelas ruas, como se ele próprio se sentisse derrotado. Todos sabiam porque é que aquilo aconteceu, e naquele momento todos concordaram que não podia ficar assim.

            Saíram às ruas tendo como armas o que quer que conseguissem segurar e a crença numa causa que jamais estaria perdida. Não agora. Os seus números eram demais para os atacantes, e estes foram forçados a sair em retirada, não sem sofrer baixas.

            Avançaram em direcção à sede máxima do poder local, entoando cânticos onde imortalizavam aqueles que por eles e pela sua liberdade lutaram e perderam a vida.

            Nessa mesma noite, nessa mesma manhã, aqueles que espezinhavam os fracos e que os exploravam, foram amargamente lembrados de que enquanto uma vida pode ser tomada, uma ideia jamais poderá ser destruída, e uma ideia que move multidões é um adversário que simplesmente não pode ser parado.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Suspiros de Vida


         Todos devemos assumir responsabilidades pelos nossos pecados. Eu própria tenho procurado fazê-lo, e por mais que me esforce, não consigo ver um fim.

            Desde que me lembro que sempre quis satisfazer o desejo de ser mãe, mas hoje arrependo-me amargamente da ingenuidade com que encarava tamanha ideia.

            Somos treinados a pensar que é no nascimento que encaramos o nosso derradeiro propósito. Que devemos preservar a nossa espécie, seja como for… mas nunca estamos preparados para lidar com as consequências. Isso não nos dizem.

            Temos que lidar com o choque, com a frustração, com a dureza da realidade de que demos vida a uma aberração, a um ser para o qual a vida é uma bênção sem mérito.

            Eu assim fiz, e oxalá não tivesse. O mundo parou diante de mim assim que o tive nos braços, mostrando-me na sua forma aquilo que faria com o seu futuro e com o nosso.

            Não vejo ninguém melhor para o tirar deste mundo do que aquela que é culpada por lhe dar vida.

terça-feira, 1 de maio de 2018

O fim da existência


          A noção de identidade depende de cada um, mas apesar da subjectividade que pode estar associada ao tópico, consegue-se consenso ao apontar a fisionomia, os ideias, as faculdades cognitivas e a personalidade como constantes inamovíveis.

            Perante isto, e perante o percurso normal da vida, onde o envelhecimento é inevitável, é apenas normal que alguns destes traços fiquem progressivamente danificados. Claro está que tal depende directamente dos hábitos que cada um leva durante a sua vida. Perante esta inevitabilidade, o corpo deteriora-se, passando a ter um aspecto claramente diferente, e o mesmo se aplica ao domínio da mente.

            Se há aqueles que se recusam a aceitar o seu corpo velho e enrugado, sobre a premissa de que não são assim, o que pensar daqueles que deixam completa e totalmente de saber quem são porque simplesmente se esqueceram?

            Perante a incerteza de algo, interno ou externo, progressivo ou não, vir a deteriorar as capacidades cognitivas de alguém e as suas memórias ao ponto de não reconhecerem o mundo à sua volta e elas próprias, é normal nutrir toda uma série de receios. E enquanto alguns o fazem, outros procuram que esta fase da vida seja vivida com toda a dignidade.

            Na face desta deterioração e esquecimento do ser, onde ele jamais será uma sombra do que já foi, eu coloco a questão: a pessoa continua a ser a mesma ou chegou ao fim da sua existência?

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Escrever a vermelho


        Diante de mim há duas realidades que se mostram eternas, o poder incontornável da palavra escrita e a memória indestrutível. Para muitos, escrever é apenas uma mera formalidade, roçando o estritamente necessário. Para mim, contudo, chegou ao ponto de ser crucial para a minha própria subsistência, uma vez que o meu próprio sistema começa a apresentar falhas de funcionamento quando a palavra escrita não é exteriorizada após um variável período de tempo. Esses mesmos problemas derivam do facto de a memória ter o seu quê de indestrutível, não se restringido a excertos de momentos, mas envolvendo diálogos na íntegra, posturas, maneirismos, sons, cheiros, horas e clima. O simples facto de haver constantemente nova informação a ser processada e interiorizada é mais que suficiente para que sobrecargas ocorram. Algo que é apenas agravado com a manutenção do ideal de perfeccionismo inalcançável.

            As memórias, independentemente da sua natureza e da razão pela qual chegam a esse estatuto, podem ser deturpadas de mil e uma maneiras, assegurando conteúdo variado que pode então ser transportado para o papel literal ou figurativo. Dominando este aspecto, torna-se mais fácil gerir o bom funcionamento, assegurando o mesmo.

            Um outro traço que também deve ser incluído nesta equação prende-se à insensibilidade ou indiferença que se nutre sobre a temática, sob o propósito de não deixar que a mesma tenha repercussões mais ou menos negativas. Este traço pode ser trabalhado, ideologicamente, até à perfeição, mas, como acima exposto, uma vez que a perfeição é inalcançável, tal não se consegue. Desta feita, há por vezes episódios em que a palavra escrita, para além de tinta literal ou figurativa, também se faz acompanhar de sangue e de alma.

            É natural que aquele que cria deixe parte de si na sua criação, mas quando se trata de preservação, tal é o total oposto. Partindo desse princípio, passa a existir cada vez menos do criador quanto mais ele criar.

            Não é algo inteiramente mau, assumindo desde logo que o fruto da sua criação seja, acima de tudo, benéfico. Ainda assim as implicações podem não agradar a todos os que se encontram na mesma situação.

            No fim, tudo se resume a isto: estamos dispostos a viver em harmonia com as nossas memórias, ou prontos a aceitar o que nos trouxe aqui, passando nós próprios a ser as memórias que outros tratarão ou não de ter em consideração?

(I)Real


Nas profundezas da realidade
É possível apurar
Que a mesma continua a estar
Dependente da projecção
Que faz dela verdade.

A realidade é real por si só,
Mas apenas com o significado
Que apenas por nós pode ser dado
É que então fica com o valor
Que remove qualquer dó.

De longe sequer pensar,
Ou até mesmo idealizar,
Que qualquer forma de ser e de estar,
Decorre alheia
À real forma de se preservar.

Enquanto esse valor não existe,
Enquanto nada se nutre pela realidade,
A mesma é desprovida de verdade,
Condenada à realidade
Da ilusão que em ser persiste.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Esperança no Caos


            Lembro-me de um homem que tinha tudo quanto se poderia desejar e vivia humildemente essa realidade. Não vangloriava o seu modo de vida e não o usava para se favorecer junto de quem quer que fosse. Apenas vivia satisfeito com a vida que tinha. E assim viveu até ao dia em que tudo lhe foi tirado.

            Naquilo que só poderia ser obra do divino, contemplou os Céus e proferiu toda a sua destruição como retribuição por lhe terem tirado aquilo que lhe era mais precioso. E com isso, numa torrente de ódio e de vingança, encobriu o céu, e uma idade de trevas pareceu alastrar-se pelo mundo.
            Não satisfeito, focou-se nos Infernos, e lançou-lhes o meu destino, como forma de garantir que mais ninguém viria a passar por aquilo que passou. Descendo à Terra, trespassou-a, e perdeu-se no seu núcleo que depois de aquecer como nunca tinha aquecido, acalmou.

            Anos passaram, e mais ninguém viu o homem. Muitos especulavam sobre o que lhe teria acontecido e onde estaria, mas ninguém se atrevia a tecer certezas. Contudo, apesar de ausente, a sua história estava mais que presente nas vidas de todos e da sua descendência.

            Lembro-me de uma rapariga que tinha tudo o que queria, e que subitamente se viu sem nada. E lembro-me que essa rapariga via naquele homem um amigo querido jamais esquecido.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Destinos


Três sãos as mulheres,
As musas por excelência,
Que fazem da sua missão,
Tecer qualquer vivência.

E tecer é o que elas fazem.
Com calma e determinação,
Tecem docemente
O fado da multidão.

Todas as vidas
Passam gentilmente pelo seu toque.
Aí elas guiam,
Para o final e derradeiro corte.

Alheias ao sofrimento causado elas estão,
Porque assim está delineado.
E a obra vai crescendo então,
Num crescendo de dor e de pecado.

Pensar não está na sua sina.
Não é essa a sua função.
Apenas deixar escrita
Na linha a fatídica união.

Mas conseguem elas ver
O meu profundo desejo,
De com as suas linhas prender
A fonte do seu fôlego?

Apertar e torcer
Até mais nada restar.
Cortar e decepar
Até a vida jorrar.

Faz apenas todo o sentido,
Que o sofrimento das Irmãs do Destino,
Esteja tanto no seu ofício,
Como no seu crepúsculo fatídico.