domingo, 17 de junho de 2018

O Poder de uma Ideia


             A noite já ia alta, e ele continuava nos seus aposentos a contemplar um mapa gasto que tinha estendido sobre a secretária, iluminado por uma tímida vela e reconfortado pela brisa fresca que passava por uma janela entreaberta.

            Revia os planos na sua cabeça, quem iria fazer o quê e quando. Já tinha perdido a conta à quantidade de vezes que analisara todos os pormenores, e no fim chegava sempre à mesma conclusão: estava tudo pronto.

            Sentando-se à secretária, prostrou-se sobre a mesa, sem nunca quebrar contacto visual com o plano que muito tempo lhe consumira, a chave para trazer a mudança e consequente esperança que o país tanto precisava. O seu queixo ficou suportado pelo seu punho fechado, e ao fim de poucos segundos começou a sentir os olhos a pesar, a querer desfrutar de um descanso merecido.

            Mesmo antes de perder a sua consciência, sentiu as tábuas do soalho a ranger, e levantando-se num salto, de pistola em riste, viu-a a aproximar-se:

            - Calma, sou só eu – disse ela, com as mãos no ar e um sorriso nos lábios.

            - Desculpa – continuou ele, devolvendo a arma ao seu coldre – apanhaste-me de surpresa.

            - É uma forma engraçada de dizer que te apanhei a dar o dia por terminado.

            - Sim, é verdade – sorriu ele – chegámos tão longe que é quase difícil de acreditar.

            - Mas não impossível – ela já estava diante de secretária, olhando de relance para o mapa cuidadosamente marcado – amanhã tudo começa e tudo acaba.

            - Esperemos que sim. Já estudei o plano de uma ponta à outra e tratei de atirar todos os problemas que me passaram pela cabeça contra ele. Se cada um fizer o seu trabalho, seremos à prova de bala.

            - É sempre reconfortante ouvir isso.

            - E os outros, como estão?

            - Estavam a acabar de arrumar as coisas e iam começar a deitar-se.

            - Óptimo, precisamos todos de estar frescos.

            - E isso inclui-te a ti, correcto? – um sorriso voltou-lhe aos lábios.

            - Sim, calculo que sim.

            Os dois trocaram olhares, deixando-se envolver num longo momento de silêncio.

            - Bem – disse ela, batendo ao de leve na mesa – vai descansar que eu vou tratar de fazer o mesmo. Vemo-nos amanhã com o raiar de um novo dia.

            - Vemo-nos amanhã.

            Com as despedidas feitas, ela retirou-se, voltando a descer as escadas de onde apareceu. Ele olhou novamente para o mapa, e soltando um suspiro levantou-se enquanto se preparava para avançar na direcção do seu quarto.

            O chão rangia levemente a cada passo, algo a que tanto ele como os restantes já estavam mais que habituados, e assim que a sua mão tomou a maçaneta de cobre, ouviu uma pequena explosão vinda do andar debaixo, seguida de algo a cair violentamente no chão. Não tinha dúvidas de que se tratara do disparo de uma arma. Outros tantos se seguiram, e começaram a ser perceptíveis passos pesados e apreçados mesmo por baixo dele.

            Ouviu-os a subir as escadas. Tentou contá-los pelos passos, mas eram simplesmente demasiados. Com o pior já enraizado, tomou a sua pistola e encostou-se atrás da mesa. Viu os primeiros a saírem das escadas e abrandar a sua marcha com armas em riste. Tinha apenas alguns segundos até ser descoberto, e nesse curto período de tempo rapidamente se apercebeu que não tinha munições suficientes.

            Inspirando fundo, e sem fazer barulho algum, levantou-se do seu esconderijo e deu os primeiros disparos, tomando as primeiras vidas. O fogo foi retribuído, mas longe de acertar no alvo dada a surpresa que caíra sobre eles. Ainda assim, aproveitando a cobertura das escadas, um conseguiu acertar, perfurando-lhe uma perna, e atirando-o rapidamente ao chão.

            Gritando de dor ao mesmo tempo que o seu sangue começava a abandonar o seu corpo, ainda tratou de procurar alguma forma de retribuição, mas a sua visão turva e lacrimejante não lhe permitiu uma percepção clara. Rapidamente ficou sem munições.

            Derrotado, e ciente do que iria acontecer, fechou os olhos e tomou o medalhão que escondia no interior da camisa. Sentiu um cano de aço quente a ser encostado à sua testa, e a última coisa que ouviu foi um novo disparo.

            Todo o tumulto foi mais que suficiente para acordar a vizinhança. Poucos eram os que se atreviam a aproximar-se das janelas para ver o que se passava enquanto balas iam sendo trocadas, mas assim que o desconfortável silêncio se fez sentir, todos trataram de observar o que tinha acabado de acontecer.

            Viram os corpos a ser levados, cada um deles espelhando expressões de desolação e desilusão, confinados ao destino cruel de apodrecerem numa qualquer vala comum enquanto a História iria, aos poucos, tratar de os esquecer.

            Todos viram o sangue que começava a escorrer lentamente pelas ruas, como se ele próprio se sentisse derrotado. Todos sabiam porque é que aquilo aconteceu, e naquele momento todos concordaram que não podia ficar assim.

            Saíram às ruas tendo como armas o que quer que conseguissem segurar e a crença numa causa que jamais estaria perdida. Não agora. Os seus números eram demais para os atacantes, e estes foram forçados a sair em retirada, não sem sofrer baixas.

            Avançaram em direcção à sede máxima do poder local, entoando cânticos onde imortalizavam aqueles que por eles e pela sua liberdade lutaram e perderam a vida.

            Nessa mesma noite, nessa mesma manhã, aqueles que espezinhavam os fracos e que os exploravam, foram amargamente lembrados de que enquanto uma vida pode ser tomada, uma ideia jamais poderá ser destruída, e uma ideia que move multidões é um adversário que simplesmente não pode ser parado.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Suspiros de Vida


         Todos devemos assumir responsabilidades pelos nossos pecados. Eu própria tenho procurado fazê-lo, e por mais que me esforce, não consigo ver um fim.

            Desde que me lembro que sempre quis satisfazer o desejo de ser mãe, mas hoje arrependo-me amargamente da ingenuidade com que encarava tamanha ideia.

            Somos treinados a pensar que é no nascimento que encaramos o nosso derradeiro propósito. Que devemos preservar a nossa espécie, seja como for… mas nunca estamos preparados para lidar com as consequências. Isso não nos dizem.

            Temos que lidar com o choque, com a frustração, com a dureza da realidade de que demos vida a uma aberração, a um ser para o qual a vida é uma bênção sem mérito.

            Eu assim fiz, e oxalá não tivesse. O mundo parou diante de mim assim que o tive nos braços, mostrando-me na sua forma aquilo que faria com o seu futuro e com o nosso.

            Não vejo ninguém melhor para o tirar deste mundo do que aquela que é culpada por lhe dar vida.

terça-feira, 1 de maio de 2018

O fim da existência


          A noção de identidade depende de cada um, mas apesar da subjectividade que pode estar associada ao tópico, consegue-se consenso ao apontar a fisionomia, os ideias, as faculdades cognitivas e a personalidade como constantes inamovíveis.

            Perante isto, e perante o percurso normal da vida, onde o envelhecimento é inevitável, é apenas normal que alguns destes traços fiquem progressivamente danificados. Claro está que tal depende directamente dos hábitos que cada um leva durante a sua vida. Perante esta inevitabilidade, o corpo deteriora-se, passando a ter um aspecto claramente diferente, e o mesmo se aplica ao domínio da mente.

            Se há aqueles que se recusam a aceitar o seu corpo velho e enrugado, sobre a premissa de que não são assim, o que pensar daqueles que deixam completa e totalmente de saber quem são porque simplesmente se esqueceram?

            Perante a incerteza de algo, interno ou externo, progressivo ou não, vir a deteriorar as capacidades cognitivas de alguém e as suas memórias ao ponto de não reconhecerem o mundo à sua volta e elas próprias, é normal nutrir toda uma série de receios. E enquanto alguns o fazem, outros procuram que esta fase da vida seja vivida com toda a dignidade.

            Na face desta deterioração e esquecimento do ser, onde ele jamais será uma sombra do que já foi, eu coloco a questão: a pessoa continua a ser a mesma ou chegou ao fim da sua existência?

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Escrever a vermelho


        Diante de mim há duas realidades que se mostram eternas, o poder incontornável da palavra escrita e a memória indestrutível. Para muitos, escrever é apenas uma mera formalidade, roçando o estritamente necessário. Para mim, contudo, chegou ao ponto de ser crucial para a minha própria subsistência, uma vez que o meu próprio sistema começa a apresentar falhas de funcionamento quando a palavra escrita não é exteriorizada após um variável período de tempo. Esses mesmos problemas derivam do facto de a memória ter o seu quê de indestrutível, não se restringido a excertos de momentos, mas envolvendo diálogos na íntegra, posturas, maneirismos, sons, cheiros, horas e clima. O simples facto de haver constantemente nova informação a ser processada e interiorizada é mais que suficiente para que sobrecargas ocorram. Algo que é apenas agravado com a manutenção do ideal de perfeccionismo inalcançável.

            As memórias, independentemente da sua natureza e da razão pela qual chegam a esse estatuto, podem ser deturpadas de mil e uma maneiras, assegurando conteúdo variado que pode então ser transportado para o papel literal ou figurativo. Dominando este aspecto, torna-se mais fácil gerir o bom funcionamento, assegurando o mesmo.

            Um outro traço que também deve ser incluído nesta equação prende-se à insensibilidade ou indiferença que se nutre sobre a temática, sob o propósito de não deixar que a mesma tenha repercussões mais ou menos negativas. Este traço pode ser trabalhado, ideologicamente, até à perfeição, mas, como acima exposto, uma vez que a perfeição é inalcançável, tal não se consegue. Desta feita, há por vezes episódios em que a palavra escrita, para além de tinta literal ou figurativa, também se faz acompanhar de sangue e de alma.

            É natural que aquele que cria deixe parte de si na sua criação, mas quando se trata de preservação, tal é o total oposto. Partindo desse princípio, passa a existir cada vez menos do criador quanto mais ele criar.

            Não é algo inteiramente mau, assumindo desde logo que o fruto da sua criação seja, acima de tudo, benéfico. Ainda assim as implicações podem não agradar a todos os que se encontram na mesma situação.

            No fim, tudo se resume a isto: estamos dispostos a viver em harmonia com as nossas memórias, ou prontos a aceitar o que nos trouxe aqui, passando nós próprios a ser as memórias que outros tratarão ou não de ter em consideração?

(I)Real


Nas profundezas da realidade
É possível apurar
Que a mesma continua a estar
Dependente da projecção
Que faz dela verdade.

A realidade é real por si só,
Mas apenas com o significado
Que apenas por nós pode ser dado
É que então fica com o valor
Que remove qualquer dó.

De longe sequer pensar,
Ou até mesmo idealizar,
Que qualquer forma de ser e de estar,
Decorre alheia
À real forma de se preservar.

Enquanto esse valor não existe,
Enquanto nada se nutre pela realidade,
A mesma é desprovida de verdade,
Condenada à realidade
Da ilusão que em ser persiste.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Esperança no Caos


            Lembro-me de um homem que tinha tudo quanto se poderia desejar e vivia humildemente essa realidade. Não vangloriava o seu modo de vida e não o usava para se favorecer junto de quem quer que fosse. Apenas vivia satisfeito com a vida que tinha. E assim viveu até ao dia em que tudo lhe foi tirado.

            Naquilo que só poderia ser obra do divino, contemplou os Céus e proferiu toda a sua destruição como retribuição por lhe terem tirado aquilo que lhe era mais precioso. E com isso, numa torrente de ódio e de vingança, encobriu o céu, e uma idade de trevas pareceu alastrar-se pelo mundo.
            Não satisfeito, focou-se nos Infernos, e lançou-lhes o meu destino, como forma de garantir que mais ninguém viria a passar por aquilo que passou. Descendo à Terra, trespassou-a, e perdeu-se no seu núcleo que depois de aquecer como nunca tinha aquecido, acalmou.

            Anos passaram, e mais ninguém viu o homem. Muitos especulavam sobre o que lhe teria acontecido e onde estaria, mas ninguém se atrevia a tecer certezas. Contudo, apesar de ausente, a sua história estava mais que presente nas vidas de todos e da sua descendência.

            Lembro-me de uma rapariga que tinha tudo o que queria, e que subitamente se viu sem nada. E lembro-me que essa rapariga via naquele homem um amigo querido jamais esquecido.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Destinos


Três sãos as mulheres,
As musas por excelência,
Que fazem da sua missão,
Tecer qualquer vivência.

E tecer é o que elas fazem.
Com calma e determinação,
Tecem docemente
O fado da multidão.

Todas as vidas
Passam gentilmente pelo seu toque.
Aí elas guiam,
Para o final e derradeiro corte.

Alheias ao sofrimento causado elas estão,
Porque assim está delineado.
E a obra vai crescendo então,
Num crescendo de dor e de pecado.

Pensar não está na sua sina.
Não é essa a sua função.
Apenas deixar escrita
Na linha a fatídica união.

Mas conseguem elas ver
O meu profundo desejo,
De com as suas linhas prender
A fonte do seu fôlego?

Apertar e torcer
Até mais nada restar.
Cortar e decepar
Até a vida jorrar.

Faz apenas todo o sentido,
Que o sofrimento das Irmãs do Destino,
Esteja tanto no seu ofício,
Como no seu crepúsculo fatídico.

quinta-feira, 8 de março de 2018

No coração das cartas

           Muitos são os que visitam a minha tenda na procura de respostas aos seus mais variados problemas. Tu és apenas uma adição a esta lista que não me dou ao trabalho de contar. Por isso, não te preocupes nem te aflijas. As cartas não mordem. Muito pelo contrário. Toma esta cadeira e deixa que elas te falem.

            O Louco. Concluíste com um sucesso um novo ciclo. Um novo capítulo da tua vida está acabado e aquilo que és está cada vez mais cimentado. Parabéns! Ainda assim, esta conclusão leva a que uma nova busca surja, uma que será certamente imprevisível, mas necessária. Decisões terão que ser feitas no momento, pelo que alguma preparação deve ser tida em conta.

            O Mago. Aqui temos a preparação para o que está para vir. Apesar da imprevisibilidade que cobre o teu caminho e independentemente das adversidades que daí advirão, terás todas as ferramentas necessárias à tua disposição para levar a tua jornada a bom porto.

            A Morte. Interessante… claramente este ciclo que se fechou deixo-te emocionalmente em baixo. Um obstáculo que se mostrou difícil de ultrapassar, e que ainda assim conseguiste. Contudo, mais está para vir. Está nas tuas mãos livrares-te de tudo aquilo que te está a prejudicar, porque só assim conseguirás seguir em frente. E podes ter a certeza de que grande parte do que te irá conter se prende ao teu passado. Um sacrifício que terás que fazer para poder conhecer a verdadeira natureza do teu futuro.

            A leitura está feita. As cartas foram lançadas e as tuas dúvidas esclarecidas. Está agora nas tuas mãos decidir o que fazer com as respostas que te foram dadas. Apesar do resultado, podes encontrar conforto na ideia de que aqui estarei para tua próxima visita.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Profundos Desejos


             Todos temos os nossos segredos. Alguns vivem deles, ora colecionando-os, ora expondo-os. O meu maior segredo foi ambicionar saber tudo sobre tudo. Apesar das limitações que o meu cérebro impõe sobre mim, uma vez que a sua capacidade de conter informação é biologicamente limitada, nunca encarei este objectivo como inatingível.

            Para alguns isto pode não parecer um segredo, mas sim um simples sonho ambicioso como tantos outros. A questão é que nem todas as formas de conhecimento são transmitidas abertamente. Algumas, as mais interessantes, estão escondidas de tudo e de todos, e nalguns casos, são tidas como há muito esquecidas.

            Durante os meus anos de estudo, dei por mim a nutrir uma dependência por esta secreta ambição. Tinha que saber mais e mais, custasse o que tivesse que custar. Vasculhei bibliotecas fora de horas, subornei para aceder a registos privados, troquei favores por documentos… tudo para ter a minha sede saciada.

            O problema deste tipo de dependências é que tendem a agravar-se, pelo que História, Psicologia, Medicina, Matemática e as demais ciências, rapidamente deixaram de ter muito para oferecer. Perante a necessidade de algo mais, recorri às artes obscuras. O Oculto, e tudo aquilo que ele implica, tomou toda a minha atenção. Estudei Alquimia e tratei de procurar sintetizar as minhas próprias soluções, os meus próprios elementos. Estudei Tarologia, Cartomancia e toda uma outra série de formas de adivinhar o futuro, meu e dos outros. Mas nada foi capaz de chegar aos calcanhares de quando aprendi a entrar em contacto com outras entidades que habitam neste mesmo plano. Há muito que se pode aprender com quem esteve presente desde o momento da criação… principalmente se se chegar a um acordo.

            Um outro problema das dependências, das obsessões doentias, é que se não tivermos cuidado, elas acabarão por nos consumir. Apesar de tudo o que aprendi, apesar de tudo o que eu já devia saber e tomar como certo, não consegui resistir à tentação de assinar um contrato com alguém que prontamente mo apresentou em troca de todos os segredos que permitem a nossa existência. A essência, o auge daquilo que é o verdadeiro saber… como é que eu poderia recusar? O meu nome reluziu com um brilho vermelho escarlate assim que assinei aquela folha, e prontamente me vi a cumprir o meu maior desejo.

            Mas agora escrevo nestas páginas com uma outra entoação. Há coisas que é melhor não sabermos. Há portas que é melhor não abrir. Neste caso, não foi o que fiz, mas com quem. O contrato pedia muito mais do que eu poderia alguma vez imaginar, algo que fiquei a saber assim que o assinei.

            Escrevo nestas páginas consciente de que é a última coisa que alguma vez farei.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Marcas de Sacrifício


            Ainda é tudo muito confuso. O efeito da anestesia ainda está presente e as minhas ideias ainda não são minhas. Sinto apenas que estou amarrado a uma cama de hospital e que a luz do meu quarto parece queimar os meus olhos.

            Após os primeiros segundos de consciência, as memórias vão regressando, e tudo começa a fazer sentido. Os meus gritos alertaram um vizinho que chamou os bombeiros. Encontraram-me meio estendido no chão da minha sala quase que a nadar no meu próprio sangue. Perdi a consciência pela primeira vez assim que eles me tocaram.

            Acordei por momentos já no hospital, cercado por médicos e enfermeiros a murmurar indistintamente. Consegui apenas ouvir algo sobre tendências masoquistas. O flash de uma câmara fotográfica foi mais que suficiente para eu voltar a perder os sentidos.

            Apesar da medicação, sinto o meu corpo a gritar de dor por baixo das várias ligaduras que apertam todo o meu corpo. Os cortes foram profundos o suficiente para isso mesmo. Não é uma questão de masoquismo. Não tiro prazer nenhum disto. É uma questão de obrigação e nada mais. Tive que o fazer… transformar o meu corpo numa tela para runas e símbolos…

            Um preço que estou disposto a pagar para nos salvar a todos.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Purificação

         O que fazes quando tens algo assustador no teu núcleo? Algo com mente e vontade próprias. Com os seus próprios objectivos e ambições. Solta-lo para que todo o mundo e consequentemente tu venham a lidar com as consequências de tal acto, ou optas por fazer tudo o que estiver ao teu alcance para apaziguar a criatura que faz de ti o seu lar? Independentemente das opções, acabarás sempre por sair prejudicado.

            Na primeira, e atendendo à natureza do que realmente tens a querer ver e sentir o calor da luz do dia, tens toda uma série de punições que te serão impostas ou pelo meio onde vives ou por ti mesmo (tens o que é preciso para lidar com o que provocaste assim que a tua consciência regressar?). Na segunda, vais ter que arranjar algo para que nada saia, e o processo de descoberta pode ser deveras longo, com a certeza de uma contrapartida: vai ser sempre preciso mais e mais.

            Como é que se lida com um parasita? Algo que se alimenta de nós. Algo que precisa de nós para viver. Algo que não só reside em nós como faz parte nós. Só por causa disso, o extermínio fica fora de questão, a não ser que tomar a própria vida seja uma opção aceitável… e todos podemos imaginar o que aconteceu ao ponto de permitir tamanha consideração.

            Todos temos os nossos próprios demónios. São da nossa exclusiva responsabilidade, e nesse sentido cada um deve determinar qual a melhor maneira de lidar com os seus.

            Haverá sempre aqueles que quererão ver o mundo em ruínas, mas valerá a pena o custo?

domingo, 28 de janeiro de 2018

Saudade

           Num dia em que o Sol procurava insistentemente penetrar a barreira de nuvens que bloqueava o seu caloroso abraço, um homem sentava-se a escrever. Longos eram os anos que marcavam a sua face enrugada, o seu cabelo branco ao nível dos ombros e a sua barba grisalha. Sentava-se numa secretária que também já muitos anos viu passar e certamente muitas histórias tinha para contar. Diante de si, uma humilde janela com vista privilegiada para a entrada da sua casa.

            Apesar do fervor com que escrevia, conseguiu aperceber-se do carro cinzento que parou à sua porta, e do homem que dele saiu. Cabelo negro, curto, talvez com pouco mais de trinta anos de idade, usando um simples casaco de cabedal e umas calças de ganga de um azul-escuro, avançou a passo normal.

            Vendo isto, o homem tratou de se levantar, descendo as escadas do seu escritório até ao andar de baixo, já com o som de batidas na porta. Apesar da idade, mexia-se bem, e não tardou a abri-la sem problemas.

            - Pai! – exclamou o visitante, abrindo os braços num abraço.

            - Como estás, filho? – perguntou o homem, recebendo-o nos seus braços.

            - Estou bem, e tu?

            - Sim, estou bem.

            - Posso?

            - Sim, claro – respondeu o homem, afastando-se para deixar o filho entrar.

            - A casa está com bom aspecto. E tu também.

            - Obrigado. São as vantagens de ter uma casa grande, há sempre algo para fazer.

            - Gosto de te ver assim.

            Fechando a porta, o homem avançou para a cozinha:

            - Queres tomar alguma coisa? Chá? Café?

            - Não, obrigado, eu estou bem.

            - Muito bem – disse ele, pegando no reservatório parcialmente cheio da máquina de café e lançando-lhe um sorriso – caso mudes de ideias, podes servir-te à vontade.

            O filho retribuiu o sorriso. Olhando para as escadas e para a fraca luz natural que as cobria, continuou:

            - Estavas no escritório?

            - Sim – respondeu o homem, aproximando-se das escadas – estava a escrever umas coisas.

            - Algo em especial?

            - Nada demais. Apenas algumas ideias.

            - Importas-te que dê uma olhadela?

            - Claro que não.

            Os dois subiram e enquanto o faziam, o homem perguntou:

            - E a Susana e os miúdos, como é que estão?

            - Estão bem. Os rapazes estão um pouco nervosos agora com a época dos exames e a Susana tem andado um pouco sobrecarregada com o trabalho, mas fora isso estamos todos bem.

            - Devias trazê-los cá um dia destes, depois de as coisas acalmarem, claro. Há espaço para todos e está-se particularmente bem nas traseiras nesta altura do ano.

            - Sim, assim que tudo estiver calmo trago-os num fim-de-semana.

            - Assim espero.

            De volta ao escritório, o homem tomou o seu lugar à secretária, dando uma vista de olhos rápida ao último parágrafo que escreveu. O filho estudou a secretária, parando o seu olhar sobre o generoso aglomerado de folhas cuidadosamente amontoado do lado esquerdo. Continuava a ser difícil para ele perceber a letra do seu pai, mas havia uma palavra, um nome, que ele reconheceria em qualquer lugar.

            - É sobre ela, não é?

            O homem suspirou:

            - Talvez.

            - Pai, eu acho uma excelente ideia fazeres o que estás a fazer, mas não achas que estás demasiado preso a esta memória? Não me interpretes mal, eu tenho tantas saudades da mãe como tu, mas quantas histórias é que tu já escreveste sobre ela?

            O homem manteve-se em silêncio, passando o seu olhar da folha que tinha diante de si para todas as outras que já tinha escrito.

            - Eu cheguei a um ponto na minha vida em que o mundo é um lugar estranho. A cada dia que passa sinto-me mais afastado dele. Sinto que há cada vez menos a fazer.

            - Pai, por favor…

            - Esta memória, isto – interrompeu o homem, apontando para as várias páginas – nada mais são que uma marca que eu quero deixar, não de mim, mas dela. Todo o tempo foi pouco, e só queria ter feito mais.

            - Todos nós queríamos – disse o filho, pousando a mão no ombro do pai – mas temos que seguir em frente. O passado já passou, e ela de certeza que não te quer ver assim.

            Tomando a mão do seu filho, acariciou-a e continuou:

            - És um bom rapaz, um bom pai, e um bom filho – sorriu, olhando-o nos olhos – mas o passado está sempre lá para mim e não posso simplesmente esquecê-lo.

            - Ninguém está a falar em esquecer, mas sim em não viver nele.

            - Não há muito mais para mim aqui. Tu estás crescido e farás um bom trabalho com os teus filhos. Esta casa deixará de me ter a mim para cuidar dela e estas páginas deixaram de ter a minha mão nelas.

            - Não digas essas coisas.

            O homem levantou-se, e manteve o sorriso:

            - Não me interpretes mal. Não quero que fiques a pensar em fatalismos, mas da mesma maneira que eu tenho que aceitar o passado, também tu tens que aceitar o futuro. Será que consegues?

            O filho olhou-o nos olhos e quase a soluçar lançou-se num novo abraço:

            - Não digas uma coisa dessas! Tu ainda vais ficar cá durante muito tempo! Ainda vais ver os teus netos a tornarem-se homens!

            O homem afagou-lhe as costas e o cabelo como muitas vezes tinha feito:

            - Sim, eu quero ver isso tudo, e gosto de pensar que irei.

            - Claro que vais… amanhã passamos cá todos para te fazer uma visita.

            - Parece-me uma óptima ideia.

            Quase quebrando o abraço, voltaram a trocar olhares. O filho quase em lágrimas e o pai o confortava com o seu caloroso olhar.

            - Amo-te, pai.

            - Também te amo, filho.

            E com isto despediram-se. O pai acompanhou o filho à porta. Ambos mantiveram-se em silêncio, mas aquela mão nas costas dizia o suficiente.

            De regresso ao seu escritório conseguiu ainda ver o seu filho a acenar-lhe, algo que ele retribuiu. Ainda o viu a partir no carro, mas assim que o viu a dobrar a esquina, sentou-se, e, calmamente tomou a caneta com que estava a escrever. Não havia pressas. Faltava-lhe apenas escrever o fim.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Em nome de outrem

               Não é preciso muito para nos apercebermos que tanto a inacção como a acção acarretam consequências com as quais teremos que lidar mais cedo ou mais tarde, directa ou indirectamente. É um princípio fundamental que qualquer acção provoca uma reacção. Contudo, a nossa deliberação, ou ausência dela, em todo este processo está longe de ser uma constante.

            É fácil persuadir. É fácil manipular. Principalmente quando alguém está num estado de significativa fragilidade.

            Deixando quaisquer moralidades de parte, todos temos um preço com uma variável disponibilidade de pagar. Mediante esta realidade, cabe então a cada um agir como achar melhor, e o mesmo se aplica aos oportunistas que vêem as consequências das suas acções a ganhar forma através dos actos forçados de outros.

            Delinear várias opções e ponderar sobre elas é fácil… e ainda mais fácil é quando a escolha é uma ilusão.

Simples peças de um mecanismo

              Não é preciso muito para que se colapse até um absolutismo de nada. Perante as condições da existência de cada um, juntamente com as influências do meio, que por si só tende a ser algo dentro do espectro do pejorativo, é natural que os mais fracos de espírito rapidamente se deixem levar por toda uma série de influências auto-destrutivas.

            Construir uma personalidade capaz de suportar estas adversidades não é fácil, sendo necessário tempo, dedicação, paciência e perseverança. Um processo meticuloso onde qualquer problema dever ser visto como uma prova de fogo à armadura que se tem vindo a construir.

            Obviamente que há outras formas de lidar com esta realidade atroz e a mais simples é a mais condicionante, uma vez que se prende às origens de cada um, que por si só traz benefícios variados. Se alguém tem a sorte de ganhar vida nestes termos, invulnerável às adversidades já referidas, mais uma peça nesta abominável máquina de suposta construção social, fica claro que muito muda.

            É fácil não querer uma solução quando se faz parte do problema. 

Prometo

Prometo que serei humano
Prometo que não serei nada mais
Prometo não deixar-te em engano
E supor que serei o melhor dos mortais

Prometo que irei desiludir
Prometo que me irei redimir
Prometo que irei sentir
Cada lição que me irás incutir

Prometo que irei errar
Prometo que serei imperfeito
Prometo que assim te irei amar
E então aí procurarei ser algo mais


Prometo…