sexta-feira, 27 de abril de 2018

Escrever a vermelho


        Diante de mim há duas realidades que se mostram eternas, o poder incontornável da palavra escrita e a memória indestrutível. Para muitos, escrever é apenas uma mera formalidade, roçando o estritamente necessário. Para mim, contudo, chegou ao ponto de ser crucial para a minha própria subsistência, uma vez que o meu próprio sistema começa a apresentar falhas de funcionamento quando a palavra escrita não é exteriorizada após um variável período de tempo. Esses mesmos problemas derivam do facto de a memória ter o seu quê de indestrutível, não se restringido a excertos de momentos, mas envolvendo diálogos na íntegra, posturas, maneirismos, sons, cheiros, horas e clima. O simples facto de haver constantemente nova informação a ser processada e interiorizada é mais que suficiente para que sobrecargas ocorram. Algo que é apenas agravado com a manutenção do ideal de perfeccionismo inalcançável.

            As memórias, independentemente da sua natureza e da razão pela qual chegam a esse estatuto, podem ser deturpadas de mil e uma maneiras, assegurando conteúdo variado que pode então ser transportado para o papel literal ou figurativo. Dominando este aspecto, torna-se mais fácil gerir o bom funcionamento, assegurando o mesmo.

            Um outro traço que também deve ser incluído nesta equação prende-se à insensibilidade ou indiferença que se nutre sobre a temática, sob o propósito de não deixar que a mesma tenha repercussões mais ou menos negativas. Este traço pode ser trabalhado, ideologicamente, até à perfeição, mas, como acima exposto, uma vez que a perfeição é inalcançável, tal não se consegue. Desta feita, há por vezes episódios em que a palavra escrita, para além de tinta literal ou figurativa, também se faz acompanhar de sangue e de alma.

            É natural que aquele que cria deixe parte de si na sua criação, mas quando se trata de preservação, tal é o total oposto. Partindo desse princípio, passa a existir cada vez menos do criador quanto mais ele criar.

            Não é algo inteiramente mau, assumindo desde logo que o fruto da sua criação seja, acima de tudo, benéfico. Ainda assim as implicações podem não agradar a todos os que se encontram na mesma situação.

            No fim, tudo se resume a isto: estamos dispostos a viver em harmonia com as nossas memórias, ou prontos a aceitar o que nos trouxe aqui, passando nós próprios a ser as memórias que outros tratarão ou não de ter em consideração?

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