terça-feira, 26 de setembro de 2017

Realização

           Sempre me disseram que os olhos eram o espelho da alma. Que através destes estranhos globos era possível ver a verdadeira natureza daquilo que nos move e daquilo que somos. Durante muito tempo dei por mim a acreditar nisso tudo, e admito que ainda acredito… de certa forma.

            Grande parte da minha vida foi passada a encarar os outros como livros abertos. Os seus maneirismos, as suas formas de ser e de estar, e principalmente os seus olhos diziam-me tudo aquilo que eu queria saber… tudo e muito mais.

            Todos não somos mais que uma compilação de segredos mais ou menos bem guardados. Enormes livros até, que podem muito bem ficar escondidos numa qualquer prateleira durante tempo incerto.

            Toda esta metodologia fascinava-me e movia-me. Fazia aquilo que gostava e era bom nisso. Quantos podem dizer o mesmo? Contudo, o humor sarcástico do destino decidiu pregar-me das suas e virar este meu talento contra mim. A quantidade de casos que me passavam para as mãos chegou a ser demasiada ao ponto de me provocar um esgotamento. Nenhuma mente consegue processar tamanha informação em tão pouco tempo e permanecer sã. A realidade distorceu-se e eu dei por mim a perder-me nela.

            O pior aconteceria não muito depois, quando estava perdido ao ponto de a realidade que agora tinha diante de mim, parecer a realidade real. Movido por mãos que já foram minhas, tomei os olhos que já foram meus como forma de, com sorte, voltar a ser eu… e posso dizer que consegui.

            Tudo voltou ao que era. Pelo menos a realidade em si. Quanto ao resto… mudou por completo. Deixei de ter livros para ler, pois não tinha olhos para o fazer. Foi um choque ao início. Aquilo que mais gostava de fazer foi-me tirado, de todas as pessoas, por mim mesmo. Mas se houve algo que realmente me marcou, foi a realização do que aquela expressão realmente significava. O espelho de algo não o representa, e no meu caso em concreto, face às reacções que todos os meus restantes sentidos vieram a contemplar, a minha alma é do mais horrendo que se pode ver.

sábado, 16 de setembro de 2017

Inesperado

           Era um dia como outro qualquer e ali estava eu no café do costume a fazer o mesmo de sempre, a olhar para as minhas notas enquanto os meus próprios pensamentos me cercavam. Longe estava eu de alguma vez imaginar que este dia ia ser muito diferente dos anteriores.

            No meio de todo o reboliço que se fazia sentir, conversas sobre temas que não interessam a ninguém e os suspiros silenciosos do dono do estabelecimento sempre que alguém faz um pedido, ela entrou. Uma rapariga alta, de cabelos e olhos escuros, pele pálida e um ar total e absoluto do mais puro desinteresse.

            Aproximou-se do balcão, fez o seu pedido ao gerente enfadado e confrontou a sala. Após alguns segundos de ponderação, aproximou-se de mim, o tipo com a única mesa livre para mais alguém.

            - Importas-te que me sente aqui? – perguntou ela.

            - De todo – respondi eu – força.

            Ela sentou-se e rapidamente fez aparecer o seu telemóvel, perdendo-se nele enquanto provava ocasionalmente o seu café.

            - Nunca te vi por estes lados – continuei eu – o que te traz a um sítio destes?

            - Sou de cá – respondeu ela, sem levantar os olhos do telemóvel – arranjei foi trabalho noutra parte do país.

            - De férias então?

            - Sim. A ver o que mudou.

            - Desculpa desiludir, mas aqui nada muda.

            Ela levantou o olhar e contemplou a sala.

            - Não, pelo menos nada que interesse.

            Ela olhou para mim e ao ver-me a sorrir, perguntou:

            - O que foi?

            - Nada, estou apenas a constatar que és a pessoa mais interessante nesta sala.

            Ela semicerrou os olhos na minha direcção:

            - Desculpa?

            - Permite-me que me explique melhor. Sempre me habituei a ver toda a gente como um livro aberto, uma história prestes a ser contada ou ainda em construção. Aquele casal ali ao fundo está a tentar dar algum sentido a uma relação que começou cedo demais e, como tal, sem as devidas fundações. Aquele grupo de amigos está a tentar, no meio daquele alarido todo, disfarçar o quão miseráveis são realmente as suas vidas; desde sobrecarregar os pais com problemas a estarem-se nas tintas para o seu próprio futuro. Ali o gerente já perdeu o gosto por isto há muito e só quer que alguém lhe fique com o café o mais depressa possível. Já tu tens um propósito contigo, algo mais significativo, o que por sua vez faz de ti interessante.

            Ela esboçou um curioso sorriso, cruzou os braços em cima da mesa e avançou sobre eles.
            - Se todos são um livro aberto para ti, o que consegues dizer sobre mim?

            - Para começar, não te conheço e, como todo o bom livro, preciso de ler mais que a contracapa para poder ter uma opinião fundada sobre ele.

            Ela manteve aquela expressão enquanto me olhava fixamente.

            - E posso saber o que é isso? – perguntou, apontando para as minhas notas.

            - Nada de… - as minhas palavras foram interrompidas pelas suas mãos a tomarem algumas das folhas de papel soltas – especial – continuei.

            - Bem – disse, enquanto trocava de pedaço de papel – o que quer que seja, não consigo perceber o que está aí escrito – continuou, enquanto me devolvia as anotações.

            - O plano é esse – disse, devolvendo-lhe o sorriso.

            - Então, vens para aqui escrever o que quer que seja que tens aí.

            - Algo do género.

            - E pode-se saber o que é?

            - Ainda estou a tentar perceber.

            Um novo olhar estranho:

            - Não sabes o que estás a fazer?

            - É mais uma questão de não saber qual é que a melhor opção do que não saber ao certo.

            - A mim parece-me a mesma coisa.

            Levantei o olhar dos meus apontamentos e vi que o sorriso dela continuava lá:

            - Creio que não estás errada.

            - Eu sei que não.

            Os nossos olhares cruzaram-se novamente, e ocasionalmente dissipavam-se nos nossos afazeres, as minhas notas e o telemóvel dela, até que este tocou uma só vez. Ela tomou-o e leu a mensagem que acabara de receber.

            - Desculpa, mas tenho que ir.

            - Claro, não há problema.

            - Queres combinar alguma coisa para outra altura?

            - Parece uma boa ideia.

            Trocámos de números e ela avançou até à saída. Abriu a porta e olhou uma última vez na minha direcção, sorriu e acenou, ao que eu prontamente retribuí. Depois disto, restou-me poder observá-la até que desapareceu para além da vitrina do lado esquerdo.

            Voltando às minhas notas, um súbito pensamento surgiu: poderia ser este o começo de um final feliz?


            

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Sentir a Incerteza

Sinto-me de forma estranha.
Sinto um desconforto
Sem qualquer tipo de retorno
Que de tamanha forma me enfada
Em busca de um novo dono.

Sinto a incerteza.
Sinto a falta de sentir
De um futuro incerto que há de vir,
Sem qualquer tipo de pressa,
Pois assim quer existir.

Sentir a inexistência de sentimento,
Perante a certeza de um futuro incerto,
Fica claro que o momento
Deve ser algo a ter por perto.

Perante a nitidez fosca
Daquilo que se aproxima,
Resta saber se a realidade é tosca
Ou algo de bela rima.

Sinta-se então
Como tão bem se sabe sentir
Pois para tal não é preciso pedir
À gente que não nega a emoção
Na hora de partir.

Mas perante tão sentimental cena,
Valerá realmente a pena?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Quando as luzes se apagam

Quando as luzes se apagam,
Os monstros saem à rua,
Divagando pela sua beleza nua e crua,
Esperando e atacando
Aqueles que nela param.

Meros mortais,
E nada mais.
Pessoas vãs tais
Cujos desejos animais
Não fazem deles mais
Que presas com desejos fatais.

Pois rezai então,
Pedindo um qualquer perdão
Que não verá qualquer razão
Neste sofrimento que sentirão.

Quando as luzes se apagam,
Todos os mortais são frágeis,
Ora por sonhos ou reais paragens,
Que os fazem temer tais imagens.

A mortalidade é real
E tal não se pode negar.
Falsos ideais de poder aqui não entram,
Ou não deveriam entrar,
Pois perante tal mal,
Apenas a morte deve ter lugar.

Negras aves pelos ares voam,
Angelicais cantos elas entoam,
E em mim prontamente repousam
Algo que sabiamente ousam
Para que assim todos ouçam.

A minha mortalidade desafiaste,
E algo nela libertaste:
A verdadeira divindade
Que governa a humanidade.

Quando as luzes se apagam,
As aves cantam,
Vocês gritam,
E pelas ruas corre um escarlate pranto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Apenas

         Já chegaste? Ainda bem. Precisava mesmo de falar contigo. Por favor, senta-te. Algo me diz que ainda vou falar durante um bocado. A verdade é esta: tu completas-me. Tu és a única pessoa capaz de preencher o vazio que há muito me consome. Tu, e só tu, és capaz de apaziguar as tormentas pelas quais por vezes passo. Apenas tu consegues deixar-me a respirar de alívio quando mais preciso.

            Aproveitando esta onda de verdades, tenho que te confessar que não posso mais viver nestes termos.

            Apesar de tudo, apesar do que te acabei de dizer, tenho que reconhecer que nada disto é saudável. Tudo isto é patológico.

            Lamento dizer-te, mas isto entre nós tem de acabar. Não queria ter que chegar a este ponto, mas apesar dos meus esforços, não o consigo evitar.

            Desculpa, mas tenho que te dizer aqui e agora que isto assim não funciona. Espero que consigas perceber e que me perdoes pelo que estou a fazer. Acredita que jamais quereria magoar-te, seja de que maneira for… e tenho consciência do peso destas palavras.

            Talvez noutras circunstâncias tudo fosse diferente, mas assim nada pode resultar… apenas porque tudo é real menos tu.