sábado, 16 de setembro de 2017

Inesperado

           Era um dia como outro qualquer e ali estava eu no café do costume a fazer o mesmo de sempre, a olhar para as minhas notas enquanto os meus próprios pensamentos me cercavam. Longe estava eu de alguma vez imaginar que este dia ia ser muito diferente dos anteriores.

            No meio de todo o reboliço que se fazia sentir, conversas sobre temas que não interessam a ninguém e os suspiros silenciosos do dono do estabelecimento sempre que alguém faz um pedido, ela entrou. Uma rapariga alta, de cabelos e olhos escuros, pele pálida e um ar total e absoluto do mais puro desinteresse.

            Aproximou-se do balcão, fez o seu pedido ao gerente enfadado e confrontou a sala. Após alguns segundos de ponderação, aproximou-se de mim, o tipo com a única mesa livre para mais alguém.

            - Importas-te que me sente aqui? – perguntou ela.

            - De todo – respondi eu – força.

            Ela sentou-se e rapidamente fez aparecer o seu telemóvel, perdendo-se nele enquanto provava ocasionalmente o seu café.

            - Nunca te vi por estes lados – continuei eu – o que te traz a um sítio destes?

            - Sou de cá – respondeu ela, sem levantar os olhos do telemóvel – arranjei foi trabalho noutra parte do país.

            - De férias então?

            - Sim. A ver o que mudou.

            - Desculpa desiludir, mas aqui nada muda.

            Ela levantou o olhar e contemplou a sala.

            - Não, pelo menos nada que interesse.

            Ela olhou para mim e ao ver-me a sorrir, perguntou:

            - O que foi?

            - Nada, estou apenas a constatar que és a pessoa mais interessante nesta sala.

            Ela semicerrou os olhos na minha direcção:

            - Desculpa?

            - Permite-me que me explique melhor. Sempre me habituei a ver toda a gente como um livro aberto, uma história prestes a ser contada ou ainda em construção. Aquele casal ali ao fundo está a tentar dar algum sentido a uma relação que começou cedo demais e, como tal, sem as devidas fundações. Aquele grupo de amigos está a tentar, no meio daquele alarido todo, disfarçar o quão miseráveis são realmente as suas vidas; desde sobrecarregar os pais com problemas a estarem-se nas tintas para o seu próprio futuro. Ali o gerente já perdeu o gosto por isto há muito e só quer que alguém lhe fique com o café o mais depressa possível. Já tu tens um propósito contigo, algo mais significativo, o que por sua vez faz de ti interessante.

            Ela esboçou um curioso sorriso, cruzou os braços em cima da mesa e avançou sobre eles.
            - Se todos são um livro aberto para ti, o que consegues dizer sobre mim?

            - Para começar, não te conheço e, como todo o bom livro, preciso de ler mais que a contracapa para poder ter uma opinião fundada sobre ele.

            Ela manteve aquela expressão enquanto me olhava fixamente.

            - E posso saber o que é isso? – perguntou, apontando para as minhas notas.

            - Nada de… - as minhas palavras foram interrompidas pelas suas mãos a tomarem algumas das folhas de papel soltas – especial – continuei.

            - Bem – disse, enquanto trocava de pedaço de papel – o que quer que seja, não consigo perceber o que está aí escrito – continuou, enquanto me devolvia as anotações.

            - O plano é esse – disse, devolvendo-lhe o sorriso.

            - Então, vens para aqui escrever o que quer que seja que tens aí.

            - Algo do género.

            - E pode-se saber o que é?

            - Ainda estou a tentar perceber.

            Um novo olhar estranho:

            - Não sabes o que estás a fazer?

            - É mais uma questão de não saber qual é que a melhor opção do que não saber ao certo.

            - A mim parece-me a mesma coisa.

            Levantei o olhar dos meus apontamentos e vi que o sorriso dela continuava lá:

            - Creio que não estás errada.

            - Eu sei que não.

            Os nossos olhares cruzaram-se novamente, e ocasionalmente dissipavam-se nos nossos afazeres, as minhas notas e o telemóvel dela, até que este tocou uma só vez. Ela tomou-o e leu a mensagem que acabara de receber.

            - Desculpa, mas tenho que ir.

            - Claro, não há problema.

            - Queres combinar alguma coisa para outra altura?

            - Parece uma boa ideia.

            Trocámos de números e ela avançou até à saída. Abriu a porta e olhou uma última vez na minha direcção, sorriu e acenou, ao que eu prontamente retribuí. Depois disto, restou-me poder observá-la até que desapareceu para além da vitrina do lado esquerdo.

            Voltando às minhas notas, um súbito pensamento surgiu: poderia ser este o começo de um final feliz?


            

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