domingo, 20 de março de 2016

        Há poucas coisas que conseguem sobreviver ao vão desejo material na incerteza das nossas vidas. A amizade é uma delas, e como tudo o resto, haverá pelo menos um momento em que ela é posta à prova e a sua verdadeira natureza vem ao de cima.
            Dois amigos de infância que muitos juram conhecerem-se desde o berço percorreram os seus caminhos lado a lado. As mesmas turmas, mais ao menos os mesmos amigos e precisamente os mesmos ideais, serem alguém na vida e fazer do mundo um lugar melhor. Nesse sentido, quando a altura chegou, um juntou-se a uma das forças policiais e consegui ingressar. Enquanto isso, o outro praticamente desapareceu do mapa.
            A carreira foi progredindo com uma ou outra promoção e a complexidade e gravidade dos casos com que lidava ia aumentando. Numa patrulha de rotina a sua vida ia mudar para todo o sempre. Foi reportado um tiroteio num bairro problemático por eles já conhecido. Ao chegar ao local esse mesmo tiroteio mantinha-se activo. Chamaram reforços e avançaram com precaução. Não conseguiam aferir se era um confronto entre grupos rivais, uma compra de droga que correu mal ou qualquer outro tipo de situação, mas todas as especulações começaram a ser eliminadas quando se aperceberam que um dos lados era composto por apenas um indivíduo, e ele dizimava a oposição.
            Apesar desta aparente vantagem, optaram por a assegurar e esperar até os reforços chegarem, mas antes que isso acontecesse, já as armas se tinham calado e os últimos corpos tinham caído ao chão. Aí os dois correram de armas a postos. Gritaram-lhe para largar o seu armamento, deitar-se no chão e pôr as mãos atrás das costas. Ele nada fez a não ser olhá-lo nos olhos. O outro também o fez, mas no calor do momento a realização não foi imediata. Contudo ela chegou. Diante de si estava aquele velho amigo, e esse velho amigo tinha acabado de matar uns poucos traficantes de droga. Esse amigo entretanto virou costas e começou a caminhar para longe. Um tiro foi disparado na sua direcção, mas um encontrão fez com que a bala se perdesse na noite.
            No carro iria contar a história de ambos. Iria reflectir sobre as conversas que mantinham, os sonhos que partilhavam os desejos que ambicionavam. E por muito que lhe custasse a admitir, ambos o tinham conseguido à sua maneira.

            

segunda-feira, 7 de março de 2016

Por entre o nevoeiro

           Lembro-me de uma cidade coberta por um espesso misticismo. Ninguém parece saber onde a encontrar e alguns defendem que ela nem sequer existe, mas eu sei que é verdade, e sei porque estive lá. Várias foram as vezes, sete para ser exacto, e todas elas culminaram nao melhor decisão que eu podia ter tomado. Tudo começa pelo princípio máximo da cidade: tu não a encontras, ela chama-te e tu simplesmente segues o caminho que ela te tece. Uma vez lá, começam os desafios e os enigmas. A brutalidade e o grotesco ao início fazem-nos temer a cidade e quem nela habita, mas é algo que cresce em nós e é só uma questão de tempo até nos apercebermos que ela quer o nosso melhor, como se de uma outra mãe se tratasse. Eu, que por nela, deambulei falo em sua defesa. Lembro-me com saudade do nevoeiro que me cumprimentou, do silêncio das ruas, das monstruosidades intrínsecas que pretendem desfazer-me e devorar-me. Lembro-me com saudade das lições por detrás desta dura aprendizagem, e sinto-me na necessidade de voltar a estas provações.

            Infelizmente, algo aconteceu à cidade. Sinto o seu chamamento, sigo-o até ao limite das minhas forças, mas nada encontro. Reconheço onde ela deveria estar, mas não há sinal. Ela não está em parte alguma, mas sinto-a a chamar por mim. O seu nevoeiro ainda existe. É ele que me mostra o caminho, mas até agora não encontro nada.

            O sofrimento é atroz. Vejo as mesmas monstruosidades na realidade em que vivo, mas não tenho mão nelas. Não vejo nelas o meu reflexo nem uma sombra de qualquer aprendizagem digna de se ter. Na cidade é diferente. Ela dá-me os meus medos. Coloca-os à minha frente e, apesar do terror, ela diz-me que é possível superá-los. Eu assim faço, assim aprendo, e assim vagueio.

            Onde estás? Uma vez mais preciso de ti e da tua sabedoria! É esta mais uma provação? Já não existem manifestações? Já não há nada para se temer? Mas preciso de ti e sinto o teu chamamento! Aprendi demasiado contigo para saber que não me iludo, o que só pode querer dizer que estamos em sintonia!

            Ambos os mundos, ambas as realidades, não são mais que lados opostos de um espelho, e esse espelho sou eu. Mas é na tua parte que eu pertenço e é nela que eu preciso de estar! Sei que não para sempre pois não é assim que é suposto ser, mas para já, neste momento em particular, nesta altura de necessidade, é o que preciso.

            O nevoeiro está mais denso… aqui estou…

terça-feira, 1 de março de 2016

            A lógica mais não é que um emaranhado de ténues teias que não só une como envolve todas as coisas. Existe lógica na ciência, na arte e também na natureza mais primitiva do próprio ser. Elevando esta ideia para um outro plano, e sem acrescentar a lógica por detrás de crenças religiosas, podia tudo culminar num lógico confronto entre a Vida e a Morte, um jogo de xadrez extenso em recursos e sem pressas no que toca ao tempo.
            Cada uma move as peças, depositando na estratégia a sua própria personalidade. A Vida mantém a sua inocência e jovialidade, executando movimentos belos e delicados, ao passo que a Morte procura castigar severamente esta ingenuidade, pois não há nada de belo na existência, apenas dor e sofrimento. Perante estes episódios a Vida procura trazer algum optimismo, como se houvesse sempre uma luz ao fundo do túnel:
            - Demasiado duro, querida Morte – diz.
            - É suposto a existência ser dura. Só assim se pode evoluir como pessoa e consequentemente como ser.
            - Mas há mais para além disso. De que adianta viver se não se apreciam as mais pequenas coisas que nos são proporcionadas?
            - Não passam de distracções.
            - Mas não serão necessárias?
            - Um momento de felicidade leva a uma vida de sofrimento.
            - Sabes muito bem que nem sempre é assim.
            - Mas não deixa de ser uma realidade.
            - Uma realidade deturpada por ti.
            - Poderia dizer o mesmo. O que seria deste mundo se existisses apenas tu? Os humanos viveriam as suas vidas alegremente, prosperando para além daquilo que o planeta permite e mesmo que conseguissem expandir-se para outros mundos, tudo não seria mais que adiar o inevitável. Mais cedo ou mais tarde tornar-te-ias em mim.
            A Viva tomou o seu tempo a digerir estas palavras, a pensar nos seus movimentos e num bom argumento:
            - Mas… será que é mesmo assim?
            - Sabes bem que é. Se queres parar de te iludir, fecha os teus olhos e vê as minhas palavras a ganharem forma.
            Ela assim fez. Viu longos anos prósperos e felizes, com as mais diversas culturas a viver em paz e harmonia, mas tal como a Morte tinha dito, foi só uma questão de tempo até o desespero dar luz às primeiras hostilidades, que se transformaram em guerras e culminaram em caos e destruição.
            - Tens razão – disse ela, deixando cair uma lágrima no tabuleiro.
            - Sei que tenho, mas também sei que tu e eu precisamos de existir. Os humanos não percebem o poder que possuem, desconhecem e nem se preocupam com as consequências das suas acções e estão totalmente alheios do seu verdadeiro potencial. Preciso de ti para lhes dares esperança, para lhes dares vontade de se levantarem de manhã e viver a sua vida, mas tu precisas de mim para que eles não vivam de ilusões.
            - Mas preciso mesmo?
            - Sim, precisas – respondeu a Morte, sorrindo.
            - Creio que é uma ilusão acreditar que não formamos nenhum ciclo.
            - Sim, é.
            - E estou contente que assim seja.
            - E eu também.
            Várias calmas e cuidadas jogadas se seguiram até que:
            - Há quanto tempo é que jogamos este jogo, querida Morte?
            - Desde o início, querida Vida.
            - E algum dia terá fim? Haverá algum vencedor?
            A Morte esboçou um estranho sorriso:
            - O fim dos tempos o dirá.