quarta-feira, 31 de maio de 2017

Aprender a Sorrir

          Após ouvir as notícias, ela correu até a casa. Correu como nunca antes tinha corrido. Um quadro quebrou-se em mil pedaços assim que ela atirou a porta contra a parede ao entrar em casa, e ao subir ao quarto, lançou-se à cama, mergulhando a cabeça na almofada, enquanto chorava profundamente. Ele entrou pouco depois e aproximou-se dela.

            - Porque choras? – perguntou, enquanto lhe afagava o cabelo.

            O seu soluçar sem fim aparente foi a única resposta.

            - Foi pelo que aconteceu? – perguntou novamente.

            Procurando recompor-se, ela anuiu, ainda com a cabeça mergulhada na almofada.

            - Tu ouviste os médicos. Não havia nada que pudesse ser feito.

            - Continua a não ser justo – disse, abafada pela almofada.

            - Claro que não é justo. Nada o é. Mas é inevitável. Mais cedo ou mais tarde temos que lidar com isto.

            - Não é justo! – gritou ela.

            - Gritar não vai ajudar.

            Levantando-se num salto, ela confrontou-o:

            - Ela era tudo para mim! Tu não percebes! Nada mais importa agora!

            Tamanha força nas palavras deixou-o surpreso por momentos, mas rapidamente lhe respondeu:

            - Não precisas de sofrer sozinha. Pôr-te no centro de tudo só complica as coisas.

            Ela pensou nas palavras e tentou responder, mas o soluçar era demasiado forte.    Ele ergueu a mão, levou-a até ao seu rosto, e limpou-lhe algumas das suas lágrimas.

            - Não chores mais.

            - Não… consigo – soluçou ela.

            - Consegues sim, sabes porquê?

            Ela abanou a cabeça.

            - Porque não deves chorar porque acabou, mas sorrir porque aconteceu.

            E naquele momento, o soluçar parou e as lágrimas deixaram de correr. Tomou o seu lugar o maior sorriso que ela alguma vez esboçou.

            

Caos

            Aconteceu novamente. Desta vez durante o dia. Durante a noite seria mais fácil de ignorar e de confundir com um simples sonho, mas para estes episódios se manifestarem quando estou consciente, resta-me apenas temer o pior.

            Tudo corria normalmente, como seria de esperar num dia assolado pelo quotidiano, até que as imagens apareceram claramente à minha frente. Sangue nas estradas, corpos no chão, grotescas labaredas a consumirem casas e uma gigantesca nuvem de fumo negro no horizonte. Se fosse um sonho, teria acordado imediatamente, mas desta vez pude apenas ficar imóvel. Rapidamente desvalorizei a situação, atribuindo a sua causa a uma notícia qualquer que tinha visto no dia anterior, mas sabia que me estava a enganar a mim mesmo.

            Mais tarde, um novo episódio, mas desta vez as imagens não eram tão hostis. Vi luz, vi figuras celestiais a aproximarem-se e pela primeira vez em muito tempo senti paz. E assim que recuperei os sentidos, mesmo antes de conseguir digerir o que vi, ela apareceu diante de mim. Mas assim que voltei a abrir os olhos, ela já lá não estava.


             Caos e paz (paz através do caos?) e ela à minha espera? Será que isto quer realmente dizer alguma coisa, ou estou simplesmente a enlouquecer?

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Equilíbrio

            Algures na nossa realidade, existe uma torre cujo único propósito é acolher aqueles que nela se reúnem com o intuito de decidir o destino do nosso mundo. Com quatro entradas, cada uma alinhada com cada um dos quatro pontos cardeais, a torre estava pronta para receber uma nova reunião. Galopando na sua direcção, quatro cavalos avançavam, um branco a Este, um vermelho a Sul, um preto a Oeste e um pálido como a cal a Norte.

            Avançavam com a determinação de quem não pretende desperdiçar tempo, e assim que se viram no negro interior daquela negra torre, os quatro cavaleiros abandonaram as suas montadas e seguiram até se verem diante de uma pequena mesa de chumbo. Sobre ela repousava uma pequena candeia, e ao aproximarem-se, os cavaleiros revelavam quem eram. O que seguia no cavalo branco empunhava um arco, o que chegou num cavalo vermelho, uma colossal espada, o que se fez acompanhar de um cavalo preto, duas balanças, e aquele cujo cavalo pálido aguardava pensativamente, carregava uma foice.

            - Os quatro aqui estão – disseram em uníssono – que comece o julgamento.

            Com isto, cada um dos quatro tomou o seu lugar à mesa:

            - Desde a nossa última reunião – disse o que empunhava as balanças – o que surgiu de novo?

            - Os conflitos não param de cessar – disse o da espada – entre eles e contra eles próprios.

            - As experiências para alargarem a sua esperança de vida têm contribuído para a sua ruína – disse o do arco.

            - A opressão e a discrepância de poderes continua a ser uma constante que não aparenta parar – disse novamente o que segurava as balanças, e que agora as tentava equilibrar com algo – e tu, Morte? Que trazes para esta reunião?

            - Nada para além do óbvio – disse a Morte – a sua mortalidade continua a ser pesada com valores materiais, e são demasiados para que tudo possa ser estabilizado.

            - Tolos – disse aquele que segurava a espada – e merecem ser tratados como tal!

            - Dizes sempre isso, Guerra – continuou aquele que tratava de atentar as balanças – talvez não sejas muito diferente deles.

            - Diferente o suficiente para reconhecer o propósito da minha existência, Fome – respondeu.

            - Se tu o dizes. E tu, Peste? Tens contribuído em favor do que relatas ou simplesmente foi algo que aconteceu da sua livre e espontânea vontade?

            - Sabes tão bem quanto eu, Fome, de que não precisamos de interferir para que eles arranjem novas formas de se destruírem.

            - E ainda assim – continuou a Morte – aqui estamos.

            - Por quanto mais tempo iremos adiar isto? – perguntou a Guerra.

            - Por quanto mais for necessário – respondeu a Fome.

            - Sabes muito bem que está escrito – interpôs a Peste.

            - Mas não temos quaisquer sinais.

            - De certeza?

            - Os selos continuam intocáveis – continuou a Morte – mas será que eles ainda servem o seu propósito?

            Uma longa pausa fez-se sentir.

            - Estás a querer questionar a nossa lei? – perguntou a Fome.

            - Estou a querer questionar uma excepção à mesma.

            A Fome encarou a Morte pensativamente, enquanto as suas balanças oscilavam lentamente.

            - Queres mesmo avançar com a destruição da humanidade?

            A Morte lançou um olhar ao resto da mesa.

            - Diria que está mais que na hora – disse a Guerra – um começo novo está em ordem!

            - E o que o impede de vir a culminar num resultado em todo igual àquele com que nos deparamos agora? – perguntou a Peste.

            - Sim, mas ouçamos a Morte – interpôs a Fome – certamente tem algo mais em mente.

            Perante o seu tom provocador, a Morte contemplou os restantes mais uma vez, e disse por fim:

            - Ainda é cedo para o Apocalipse. Não se preocupem, pois se a humanidade cair, será pelas nossas mãos. Até lá, deixemo-los continuar, mas não nestes termos. Intensifiquemos as nossas intervenções. Deixemos claro que existimos e que observamos. Deixemos claro que eles são apenas humanos.

            Um longo silêncio caiu sobre os quatro. Vários olhares foram trocados, como se estivessem a procurar ler os pensamentos uns dos outros.

            - Parece-me uma boa ideia – disse a Peste.

            - Ser menos benevolentes para com eles? Parece-me um bom começo – concordou a Guerra.

            A Fome continuava a encarar a Morte, mas algo mais chamou a sua atenção. As suas balanças estavam agora em absoluto equilíbrio.

            - Parece-me que a decisão está mais que tomada – disse – o Apocalipse será adiado.

            - Apenas por agora – continuou a Morte.

            - Sim – respondeu a Fome.

            - Os quatro aqui estão – disseram novamente em uníssono – e a decisão está tomada.

            Despedindo-se com estas palavras, cada um voltou à sua montada, e desapareceram no horizonte para que a palavra falada seja convertida em acção tomada.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Profecia

         Lembro-me bem daquele dia. Demasiado bem. Milhares reuniram-se lá para assistir à cerimónia, e claro, ao responsável máximo que cá veio presidir as celebrações. A fé que nos unia e que nos guiava, ali estava realmente viva. Não há palavras para descrever. Mas subitamente, tudo mudou.

            Não sei ao certo o que se passou. Foi demasiado rápido e o caos que rapidamente ganhou forma tornou impossível qualquer forma de contexto. Lembro-me de ter ouvido explosões. Lembro-me ter ouvido balas a serem disparadas. Lembro-me dos gritos e das lágrimas. Gritos e lágrimas de homens, mulheres e crianças que ali se dirigiram com as melhores intenções.

            No meio da multidão em fuga, lembro-me de ver o responsável máximo prostrado no chão, tal como os que estavam junto dele. Dobrados como a estrutura que tinham sobre ele. As suas vestes de um branco divino estavam agora vermelhas, e era possível ver o sangue a escorrer pelo e para o chão. O próprio céu que estava limpo agora soltava um longo pranto.

            Muitos outros caíram, alguns dos quais ao meu lado. As suas expressões estão bem claras na minha memória. E claro que me lembro de tudo. Foi a última coisa que vi.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Indiferente

O que é o amor para quem não sente?
O que é Deus para um não crente?
O que é poder para quem não o tem?
O que é a realidade para quem ela vive sem?

Perante tamanha simplicidade,
Perante desnecessária complexidade,
A vontade de continuar
Surge com bastante pesar.

Para quê?
Perguntam os verdadeiros sábios.
Porque sim.
Respondem os insolentes lábios.

Vontade para algo mais surge,
Algo que sedento urge,
Que a sociedade moral atenta
E que muitos apoquenta.

O desconforto é demasiado,
Mesmo com tudo preparado.
Perante a bênção insolente,
Tomara apenas ficar indiferente.