terça-feira, 6 de setembro de 2016

               Durante muitos anos vivi a vida de um número infindável de personagens, explorei um igual número de mundos e em todos eles deixei a marca que melhor me pareceu deixar. Alguns desses mundos mais não eram que criações da minha própria imaginação, e todas construções têm o mesmo elemento comum, um escape da realidade.
            Se a realidade fosse aquilo que nós esperaríamos que ela fosse, não havia necessidade de procurar estes refúgios. Há quem mude de país, há quem mude de mundo à procura de uma igualmente melhor realidade. Mas precisamos, para o melhor e para o pior, de aceitar esta que é a máxima realidade, a que governa o nosso quotidiano e as nossas vidas igualmente reais. Não podemos deixar que a nossa imaginação interferia com o nosso papel (seja ele qual for) numa realidade corrompida que assim é porque alguém o quer e porque se mostra o método mais rentável a vários níveis, pois tal não é conveniente.
            A nossa realidade não é mais que isto, uma horrenda e grotesca verdade inconveniente mascarada de algo que nunca será e à qual estamos algemados, carregando as nossas esperanças de que algo melhor surgirá, os nossos próprios mundos.

            Quando estás no Inferno, só o Diabo te pode salvar.

sábado, 13 de agosto de 2016

Um, dois, três,
Aí vem ele outra vez.
Quatro, cinco, seis, sete,
Já escorre o meu sangue pelo tapete.

Oito, nove, dez,
Ainda não sarou aquilo que ele me fez.
Onze, doze, treze, catorze,
Já está em brasa a sua lâmina de bronze.

Quinze, dezasseis, dezassete,
Começa a acariciar-me a sua machete.
Dezoito, dezanove, vinte,
A minha carne dilacerada é ponto assente.

Vinte e um, vinte e dois, vinte e três,
Aqui está ele outra vez!
Vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis,
Meu Senhor, eu peço que a minha alma acolheis!

Vinte e oito, vinte e nove, trinta,
Já nada resta da minha cinta.
Trinta e um, trinta e dois, trinta e três,
Ele continua a mutilar-me uma e outra vez.

Trinta e quatro, trinta e cinco, trinta e seis,
Porque é que não me ajudais?
Trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove,
Que mal fiz eu ao vosso nome?

Quarenta, quarenta e um, quarenta e dois,
Estamos aqui sós.
Quarenta e três, quarenta e quatro, quarenta e cinco,
Do meu corpo nada sinto.

Quarenta e seis, quarenta e sete, quarenta e oito,
Já não sou capaz de sentir nenhum açoite.
Quarenta e nove, cinquenta,
Nada mais me atormenta.

Cinquenta e um, cinquenta e dois,
Ali estão eles a sós.
Cinquenta e três, cinquenta e quatro,
Inanimado já não me levanto.

Cinquenta e cinco, cinquenta e seis, cinquenta e sete,
Rezo para que a minha alma me leve.
Cinquenta e oito, cinquenta e nove, sessenta,
Espero que desta vez a morte seja certa.





sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Um momento

A deslumbrante luz da vida
De uma débil chama não passa
Quando confrontada com a derradeira sina
Que extinguirá a sua marca.

Uma eternidade finita vivida,
Uma eternidade finita sofrida,
Ou pelo menos o é se assim foi sentida,
Pois não há vida sem a dor sua amiga.

Podem negá-lo e contrapor,
Alegando um nascimento de ouro banhado,
Mas também certa é a dor
Independentemente de quem seja o destinado.

Um momento, um suspiro,
Um dia que depressa se torna noite.
Um novelo que agora é um fio,
Débil como sempre foi, e que sorte.

É bela a fragilidade,
E é ela que lhe dá valor.
De que valeria a eternidade
Sem qualquer tipo de ardor?

Viva-se pois então!
Com animosa e cuida atenção,
Pois a imprevisibilidade tem razão
E não é meiga quando se lhe opõe qualquer questão.

Que se gira o tempo com cuidado,
Após perdido não há outro.
Vive-se um momento acordado
E uma eternidade morto.

domingo, 20 de março de 2016

        Há poucas coisas que conseguem sobreviver ao vão desejo material na incerteza das nossas vidas. A amizade é uma delas, e como tudo o resto, haverá pelo menos um momento em que ela é posta à prova e a sua verdadeira natureza vem ao de cima.
            Dois amigos de infância que muitos juram conhecerem-se desde o berço percorreram os seus caminhos lado a lado. As mesmas turmas, mais ao menos os mesmos amigos e precisamente os mesmos ideais, serem alguém na vida e fazer do mundo um lugar melhor. Nesse sentido, quando a altura chegou, um juntou-se a uma das forças policiais e consegui ingressar. Enquanto isso, o outro praticamente desapareceu do mapa.
            A carreira foi progredindo com uma ou outra promoção e a complexidade e gravidade dos casos com que lidava ia aumentando. Numa patrulha de rotina a sua vida ia mudar para todo o sempre. Foi reportado um tiroteio num bairro problemático por eles já conhecido. Ao chegar ao local esse mesmo tiroteio mantinha-se activo. Chamaram reforços e avançaram com precaução. Não conseguiam aferir se era um confronto entre grupos rivais, uma compra de droga que correu mal ou qualquer outro tipo de situação, mas todas as especulações começaram a ser eliminadas quando se aperceberam que um dos lados era composto por apenas um indivíduo, e ele dizimava a oposição.
            Apesar desta aparente vantagem, optaram por a assegurar e esperar até os reforços chegarem, mas antes que isso acontecesse, já as armas se tinham calado e os últimos corpos tinham caído ao chão. Aí os dois correram de armas a postos. Gritaram-lhe para largar o seu armamento, deitar-se no chão e pôr as mãos atrás das costas. Ele nada fez a não ser olhá-lo nos olhos. O outro também o fez, mas no calor do momento a realização não foi imediata. Contudo ela chegou. Diante de si estava aquele velho amigo, e esse velho amigo tinha acabado de matar uns poucos traficantes de droga. Esse amigo entretanto virou costas e começou a caminhar para longe. Um tiro foi disparado na sua direcção, mas um encontrão fez com que a bala se perdesse na noite.
            No carro iria contar a história de ambos. Iria reflectir sobre as conversas que mantinham, os sonhos que partilhavam os desejos que ambicionavam. E por muito que lhe custasse a admitir, ambos o tinham conseguido à sua maneira.

            

segunda-feira, 7 de março de 2016

Por entre o nevoeiro

           Lembro-me de uma cidade coberta por um espesso misticismo. Ninguém parece saber onde a encontrar e alguns defendem que ela nem sequer existe, mas eu sei que é verdade, e sei porque estive lá. Várias foram as vezes, sete para ser exacto, e todas elas culminaram nao melhor decisão que eu podia ter tomado. Tudo começa pelo princípio máximo da cidade: tu não a encontras, ela chama-te e tu simplesmente segues o caminho que ela te tece. Uma vez lá, começam os desafios e os enigmas. A brutalidade e o grotesco ao início fazem-nos temer a cidade e quem nela habita, mas é algo que cresce em nós e é só uma questão de tempo até nos apercebermos que ela quer o nosso melhor, como se de uma outra mãe se tratasse. Eu, que por nela, deambulei falo em sua defesa. Lembro-me com saudade do nevoeiro que me cumprimentou, do silêncio das ruas, das monstruosidades intrínsecas que pretendem desfazer-me e devorar-me. Lembro-me com saudade das lições por detrás desta dura aprendizagem, e sinto-me na necessidade de voltar a estas provações.

            Infelizmente, algo aconteceu à cidade. Sinto o seu chamamento, sigo-o até ao limite das minhas forças, mas nada encontro. Reconheço onde ela deveria estar, mas não há sinal. Ela não está em parte alguma, mas sinto-a a chamar por mim. O seu nevoeiro ainda existe. É ele que me mostra o caminho, mas até agora não encontro nada.

            O sofrimento é atroz. Vejo as mesmas monstruosidades na realidade em que vivo, mas não tenho mão nelas. Não vejo nelas o meu reflexo nem uma sombra de qualquer aprendizagem digna de se ter. Na cidade é diferente. Ela dá-me os meus medos. Coloca-os à minha frente e, apesar do terror, ela diz-me que é possível superá-los. Eu assim faço, assim aprendo, e assim vagueio.

            Onde estás? Uma vez mais preciso de ti e da tua sabedoria! É esta mais uma provação? Já não existem manifestações? Já não há nada para se temer? Mas preciso de ti e sinto o teu chamamento! Aprendi demasiado contigo para saber que não me iludo, o que só pode querer dizer que estamos em sintonia!

            Ambos os mundos, ambas as realidades, não são mais que lados opostos de um espelho, e esse espelho sou eu. Mas é na tua parte que eu pertenço e é nela que eu preciso de estar! Sei que não para sempre pois não é assim que é suposto ser, mas para já, neste momento em particular, nesta altura de necessidade, é o que preciso.

            O nevoeiro está mais denso… aqui estou…

terça-feira, 1 de março de 2016

            A lógica mais não é que um emaranhado de ténues teias que não só une como envolve todas as coisas. Existe lógica na ciência, na arte e também na natureza mais primitiva do próprio ser. Elevando esta ideia para um outro plano, e sem acrescentar a lógica por detrás de crenças religiosas, podia tudo culminar num lógico confronto entre a Vida e a Morte, um jogo de xadrez extenso em recursos e sem pressas no que toca ao tempo.
            Cada uma move as peças, depositando na estratégia a sua própria personalidade. A Vida mantém a sua inocência e jovialidade, executando movimentos belos e delicados, ao passo que a Morte procura castigar severamente esta ingenuidade, pois não há nada de belo na existência, apenas dor e sofrimento. Perante estes episódios a Vida procura trazer algum optimismo, como se houvesse sempre uma luz ao fundo do túnel:
            - Demasiado duro, querida Morte – diz.
            - É suposto a existência ser dura. Só assim se pode evoluir como pessoa e consequentemente como ser.
            - Mas há mais para além disso. De que adianta viver se não se apreciam as mais pequenas coisas que nos são proporcionadas?
            - Não passam de distracções.
            - Mas não serão necessárias?
            - Um momento de felicidade leva a uma vida de sofrimento.
            - Sabes muito bem que nem sempre é assim.
            - Mas não deixa de ser uma realidade.
            - Uma realidade deturpada por ti.
            - Poderia dizer o mesmo. O que seria deste mundo se existisses apenas tu? Os humanos viveriam as suas vidas alegremente, prosperando para além daquilo que o planeta permite e mesmo que conseguissem expandir-se para outros mundos, tudo não seria mais que adiar o inevitável. Mais cedo ou mais tarde tornar-te-ias em mim.
            A Viva tomou o seu tempo a digerir estas palavras, a pensar nos seus movimentos e num bom argumento:
            - Mas… será que é mesmo assim?
            - Sabes bem que é. Se queres parar de te iludir, fecha os teus olhos e vê as minhas palavras a ganharem forma.
            Ela assim fez. Viu longos anos prósperos e felizes, com as mais diversas culturas a viver em paz e harmonia, mas tal como a Morte tinha dito, foi só uma questão de tempo até o desespero dar luz às primeiras hostilidades, que se transformaram em guerras e culminaram em caos e destruição.
            - Tens razão – disse ela, deixando cair uma lágrima no tabuleiro.
            - Sei que tenho, mas também sei que tu e eu precisamos de existir. Os humanos não percebem o poder que possuem, desconhecem e nem se preocupam com as consequências das suas acções e estão totalmente alheios do seu verdadeiro potencial. Preciso de ti para lhes dares esperança, para lhes dares vontade de se levantarem de manhã e viver a sua vida, mas tu precisas de mim para que eles não vivam de ilusões.
            - Mas preciso mesmo?
            - Sim, precisas – respondeu a Morte, sorrindo.
            - Creio que é uma ilusão acreditar que não formamos nenhum ciclo.
            - Sim, é.
            - E estou contente que assim seja.
            - E eu também.
            Várias calmas e cuidadas jogadas se seguiram até que:
            - Há quanto tempo é que jogamos este jogo, querida Morte?
            - Desde o início, querida Vida.
            - E algum dia terá fim? Haverá algum vencedor?
            A Morte esboçou um estranho sorriso:
            - O fim dos tempos o dirá.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Fado

Infortúnio dos infortúnios
Porque diariamente passo,
Forjados por intemporais descuidos
E temperados com um negro fado

Viver de esperanças e sonhos,
Alimentando-os como se de futuros filhos fosse,
Apenas para os ver abandonados
E impregnados num amor precoce

Incorrespondido é esse amor,
Pois se tal não fosse o caso,
Habitar-se-ia num outro calor
Confortável e sereno como um materno regaço

Mas não adianta combater este fado,
Ou pelo menos assim se aparenta,
Pois pelo rolar de um qualquer divino dado
Do sofrimento causado alguém se alenta

Levantar, cair, rastejar e repetir,
Falhar, crer iludido e para um infinito ciclo condenado
Um ciclo demasiado forçado para partir,

Mas silêncio agora, pois tem que se viver o fado 

sábado, 27 de fevereiro de 2016

           A vida humana é sobrevalorizada, um lema que ele conhecia e defendia bem. Quando o nosso trabalho consiste em ceifar vidas, pensar no seu valor não é mais que uma inconveniente distracção, mas há sempre um momento em que algo nos faz mudar a nossa perspectiva, ou pelo menos questioná-la.
            Ele já tinha uma carreira respeitável neste ramo. Era eficiente, implacável e levava qualquer tipo de trabalho a bom rumo, desde que o dinheiro fosse bom. Os alvos raramente iam para além do resultado de rivalidades entre os vários tipos organizações criminosas, tanto por não confiaram uns nos outros ou só porque sim. Certo dia, algo de diferente aconteceu, e ia mudar a sua vida para sempre.
            Um casal conseguiu chegar até ele. Visualmente destroçados contaram a sua história. Tinham um filho de 12 anos, um miúdo inteligente e com um futuro brilhante pela frente, que tinha morrido há coisa de semanas. As causas eram suspeitas, principalmente por os resultados da autópsia se terem mostrado inconclusivos. A única coisa que se conseguia apurar é que tinha sido encontrado num descampado. Contudo, os pais tinham um suspeito, ou melhor, tinham um culpado. Um padre seu conhecido tinha-se aproximado da criança. Nada de alarmante a princípio, mas a insistência dele para acompanhar a criança fosse para o que fosse, começou a levantar questões. O rapaz nada dizia, e o padre muito menos. O comportamento da criança mudou, perdendo gradualmente a vivacidade que se espera em alguém da sua idade, e apesar da preocupação dos pais ele continuava a não dizer nada. Dias mais tarde, apareceu morto. Os pais partilharam as suas suspeitas com as autoridades, que a princípio se mostraram intrigadas, tal como era o seu dever, mas com o estranho resultado da autópsia e o súbito desinteresse das forças competentes tornou-se impossível dar corpo a uma acusação e um julgamento nem sequer viria a imaginar-se.
            Desesperados por justiça decidiram recorrer a outro método. Tinham trazido com eles uma mala. No seu interior estava uma grande parte das suas poupanças, se não a sua totalidade. Aceitar dinheiro fazia parte do acordo, mas algo neste caso fazia-o desprezar a ideia. Ignorou a oferta, e procurando acalmar o seu pranto, garantindo-lhes que o faria pagar, matando-o lentamente e as vezes que lhe fosse possível. Depois de receber a morada e uma fotografia, acompanhou-os à saída, e pediu-lhes para tentarem seguir em frente com as suas vidas. Feito isto, estava na hora das preparações.
            O alvo vivia nuns apartamentos um tanto ou quanto luxuosos no centro da cidade, o que por si só levantava ainda mais questões. Passar pela pouca segurança que ali rondava não se mostrou um problema. Chegou ao quarto que lhe foi indicado, bateu à porta, e foi o próprio alvo a abri-la. Empurrou-o para dentro e trancou a porta, reforçando-a depois com uma cadeira que repousava ali perto. Sob as ameaças de chamar a polícia por agressão e invasão de propriedade privada, começou a dizer o que o trouxe ali. Assim que falou no rapaz o seu rosto ficou sem pinga de sangue. As suas palavras negavam a acusação, mas tudo o resto falava contra ele. O seu discurso mudou logo após os primeiros socos. Confessou. Abusou do rapaz uma última vez e como foi a última, fez com que ficasse gravada para sempre, tanto na sua memória como no corpo da criança. Não podia ver o seu bom nome destruído num processo desta natureza e pediu que o salvaguardassem. Havia outros. Um olhar mais doutrinário diria que esta confissão não tem qualquer valor, visto que para se livrar da dor bastaria dizer o que o interrogador quer ouvir, mas, neste caso, ele estava a ser espancado e tudo o que dizia era verdade, e dizia-a com todos os dentes que vinha sendo forçado a cuspir.
            Vizinhos tinham começado a bater à porta procurando saber se estava tudo bem e qual o porquê dos seus gritos. Tentou pedir auxílio, mas um golpe seco partiu-lhe o maxilar. Ainda assim, gritou. Era só uma questão de tempo até alguém aparecer e arrombar a porta. Tinha que se apressar. Queria que ele ficasse quieto, por isso partiu-lhe os braços e as pernas com um martelo. Posto isto, foi directo ao assunto e castrou-o recorrendo a um x-acto enferrujado (havia pressa, mas não assim tanta). De seguida cravou-lhe “pedófilo” na testa e “o primeiro de muitos” no abdómen. O sangue que perdera e a própria agonia já o tinham feito perder os sentidos. Não lhe restava muito tempo de vida, mas ainda não tinha acabado o trabalho. Uns safanões acordaram-no uma última vez, apenas para poder ver o que o esperava.
            A polícia acabou por chegar ao local. A porta estava aberta, como que se estivesse à espera deles para os receber. Encontraram uma generosa poça de sangue aos pés da cama e ao pé dela um conjunto de genitais masculinos. Um rasto de sangue levava até às janelas e fora delas, atado pelo pescoço com umas cortinas escarlates, estava o padre que ali morava. Futuras buscas à casa revelariam acessórios, vídeos e fotografias dos encontros que ele tinha ali mesmo naquele quarto.
            Os pais tinham razão desde o início, e podiam, talvez, dormir descansados por a justiça ter arranjado maneira de ver a luz do dia. O mesmo não se pode dizer de outros.

            

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Nas trevas do meu subconsciente, dou por mim a contemplar uma ténue luz ao fim de um infinito túnel. Minutos passam e a distância é a mesma. As leis da física não funcionam da mesma maneira nesta dimensão. Tudo tem vida própria, tudo tem uma física própria, tudo vive, tudo morre; tudo ressuscita e tudo mata. A frieza do ar inexistente deixa claro desde o começo do que quer que isto seja que as hostilidades não tardam. Vagueio em vão em direcção à débil luz que, de alguma forma, parece degustar a minha aparente confusão.

Uma dor aguda percorre o meu corpo, algo nas minhas costas, no ombro esquerdo (afinal era isto que apreciava). Grito, mas não sai nenhum som, tento controlar a dor, mas ela rapidamente se expande (estacas?). Viro-me para nada ver, apenas um vulto com algo nas mãos. Agora o estômago. Primeiro sinto a pele a ser dilacerada, depois a carne e então o estômago é perfurado. Graças àquela luz é possível ver o brilho escarlate naquela escuridão; uma vez mais, alguém está a apreciar. De joelhos, coberto naquilo que mantinha vivo, uma outra atravessa-me o peito (respirar torna-se difícil), sou pontapeado, o chão recebe-me, a mim e ao que é meu. Braços, pernas, sinto cada milímetro e cada segundo. Nada vejo nem nada reconheço. Sinto-me a desaparecer. A luz ganha a vida que eu perco e as trevas iluminam-se.


Acordo, agora plenamente consciente (será?). Só um sonho, só um pesadelo, só mais uma noite… amanhã repetimos.