Numa nova visita pelo
nevoeiro, dei por mim num pequeno bote. Continuava tudo a ser bastante
familiar. Continuava a seguir o meu propósito e ao encontro de alguém. Tomando
os remos, segui viagem, mas rapidamente me apercebi de que algo não estava bem.
Nesta cidade que o nevoeiro faz sua, tudo tem um propósito, e uma vez que
aparentavam existir alterações a este momento que tenho vindo a reviver, podia
apenas questionar-me quanto à razão… e também que planos teria para mim.
Normalmente limitar-me-ia a atravessar um rio e após uma
série de eventos por mim já conhecidos, voltaria a reviver tudo num ciclo
praticamente infinito. Mas desta vez o rio era algo mais, e a primeira deixa de
que algo diferente me aguardava surgiu quando o nevoeiro se dissipou. Ali
estava eu, em pleno mar aberto, na companhia da solidão e do silêncio. Olhando
em volta nada via, nada à excepção de uma luz, uma luz bastante familiar.
Tomando novamente os remos segui no seu encalce, expectante, mas cuidadoso. Por
longos momentos parecia que não conseguia sair do mesmo sítio, talvez fosse o
próprio cansaço ou a solidão em si a tomar a melhor de mim, mas creio que era
suposto ser assim. Olhando para o céu estrelado num momento de descanso,
reparei que algo por lá navegava, e que crescia com o passar de cada segundo.
Estava a aproximar-se. Instintivamente saltei do bote e entreguei-me àquelas águas
geladas, no preciso momento em que aquele avião incandescente se despenhava
alguns metros mais à frente.
Aquele momento em que ar voltou a entrar nos meus pulmões
foi sem dúvida alguma uma benesse, mas atendendo à quantidade de destroços que
me rodeavam, faltava saber de quem. Para além disto, a luz estava agora diante
de mim, e podia ver claramente aquilo que realmente era. Um farol. Uma
imponente estrutura no meio do oceano. O meu bote estava perdido nos destroços
e estes não me serviriam de nada nesta situação. Restava-me apenas seguir em
frente antes que as águas me consumissem.
Alcancei a base da estrutura e subi as suas escadas. Uma
bela e gigantesca porta dourada entreabriu-se à minha chegada. Um estranho
convite ao qual eu não me podia dar ao luxo de recusar. Empurrei o seu colossal peso o mais que pude
até que me foi possível entrar, e assim que o fiz, ela fechou-se prontamente,
deixando-me às escuras. O som daquilo que podia ser uma espécie de gerador
ecoou e luzes acenderam-se, ou pelo menos algumas, tanto decorando o espaço,
como indicando um caminho pela escadaria que agora surgia à minha esquerda. Aos
meus pés jazia um longo pedaço de tecido, um que certamente adornava a estátua
que tinha à minha frente. Estava bastante degradado, mas no seu fundo escarlate
notava-se claramente em dourado “Nem deuses nem reis. Apenas o Homem”. Seguindo
as escadas na companhia do ecoante som dos meus passos, deparei-me com um
estranho submarino, ou pelo menos foi a primeira coisa que me veio à cabeça
quando me deparei com tamanha maquinação. Ocupei o seu interior, e aproveitei
os seus bancos para descansar um bocado. As minhas roupas continuavam
encharcadas, e eu não podia continuar neste estado muito tempo. No meio da
minha reflexão deparei-me com uma alavanca, e perante a falta de alternativas,
tomei-a e puxei-a. A porta por onde entrei fechou-se, e o submarino balançou, atirando-me
de um lado ao outro no seu interior. Sem aviso, senti-o a cair e parando
somente quando atingiu água… mas não parou realmente. O vidro na porta
permitia-me ver o que se passava, e o que num momento não passava de uma longa
parede de betão submersa, tornou-se numa vista espantosa de uma cidade
subaquática. Conseguia ver luminosos outdoors
publicitários a fazer lembrar as grandes capitais, mas rapidamente me apercebi
que este brilhante exterior escondia algo.
Segui imóvel, contemplando este magnifico achado e o assombroso
ar que todo o ambiente circundante e a ausência de luz no seu interior lhe
conferiam. Por fim, o submarino chegou ao fim da linha e emergiu até me ser
possível abandoná-lo, e assim fiz, começando assim a minha viagem.
Deve ter durado horas, horas nas quais me cruzei com um
imenso número de corpos decadentes e deformados, inúmeras publicidades e postos
de venda de produtos que aparentemente manipulavam o código genético conferindo
uma série de magnificas habilidades a quem os consumisse. Contudo, não vi
nenhum exemplar. Depressa me deparei com cartazes de teor político, apelos a
uma revolução e, claro, a outra face da moeda, a criação deste sítio como um
lugar sem regras e sem limitações, como aquele pedaço de tecido anunciara.
Olhando para o caos à minha volta, vi que tudo não passava de uma utopia
perfeita, e uma vez que tal advém da vontade do ser humano, imperfeito por
natureza, estava condenada a falhar desde o início. Não há qualquer outra forma
gentil de o dizer. E perante esta realização, vi o nevoeiro a aproximar-se uma
vez mais, cercando-me, e aproveitando-se da minha impotência, envolvendo-me uma
vez mais.
Senti vento a soprar nos meus cabelos. Aliás, senti-me a
voar, e ao abrir os olhos, reparei que não estava a voar, mas sim a cair.
Pânico apoderou-se de mim naquele que seria certamente o meu último momento,
até que me senti a ser arremessado. O impacto não me permitiu ver o que era. Só
me recordo de um vulto negro antes de ter embatido contra algo sólido.
Sentindo-me em porto seguro, abri novamente os olhos e o que vi deixou-me boquiaberto.
Uma nova cidade, desta vez no meio das nuvens, e ao contrário da anterior,
cheia de vida… se calhar até demais. Por entre a confusão da multidão ouvi
falar de um falso profeta que capturou uma criança milagre, uma rapariga, e que
devia ser parado a qualquer custo. Fiquei completamente estarrecido perante as
forças incumbidas desta missão, incluindo pessoas claramente debilitadas
transformadas em estranhas e grotescas maquinações. No meio da confusão e dos
confrontos pelo que parecia entre as autoridades e um grupo popular de revolta
popular, vi ao longe um homem e uma rapariga a desaparecerem por um estranho
portal. Perante tão estranho fenómeno não me apercebi da nova formação do
nevoeiro, desta vez puxando-me, e assim que atravessei o chão, dei por mim
novamente diante de um novo farol. Não, não novo, o mesmo… ou será que não?
Olhando em volta vi outros mais, e diante das suas
entradas, outros como eu, aliás, eu mesmo… ou será que não? Senti um sussurro,
algo sobre constantes e variáveis, e o abrir da porta atrás de mim fê-lo
dissipar-se. Entrei nela mais uma vez, novamente chamado pelo nevoeiro que
agora dela brotava, e assim que se dissipou, vi-me novamente no bote, com o
mesmo avião novamente prestes a despenhar-se.
Novamente preso num ciclo infinito. Talvez algum dia o
consiga quebrar.
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