segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

            - Porque é que me chamaste?
            - Ainda tens a lata de me perguntar isso?
            Do interior do seu capuz negro e corroído, lançou-me um olhar que seria capaz de arrepiar e até mesmo de despedaçar qualquer espinha, mas não a minha.
            - Devias ter mais cuidado com as palavras que usas.
            - Há alguma razão para isso?
            Começou a grunhir e os seus ossos a estalar por força da minha falta de respeito, e falou mais uma vez, na sua voz vazia e distorcida.
            - Eu exijo respeito!
            - Tens uma moral desgraçada para falar.
            - SILÊNCIO!
            E no fim deste berro atirou a sua foice na minha direcção, cravando o chão mesmo mesmo à minha frente, a poucos centímetros dos meus pés.
            - Esperas que isso me meta medo? – perguntei eu, olhando e colossal foice de cima abaixo – estás assim tão desesperada por respeito ou o que quer que seja que procuras?
            Nada disse, mas também não deixei.
            - Deixa-me dizer-te uma coisa e é precisamente por isso que te chamei… O QUE RAIO PENSAS QUE ESTÁS A FAZER?! Se não estou em erro era suposto tu levares quem merece ser levado, não quem tem ainda tem muito para dar e pessoas de quem cuidar!
            - Eu continuo a fazer o que me compete.
            - Então deixa-me dizer-te que precisas de arranjar uma nova carreira e depressa.
            - Eu não vou tolerar mais faltas de respeito! Um mero mortal acha que me consegue substituir? Blasfémia!
            - Eu não acho, eu tenho a certeza. Não sei o quão bem me conheces, mas dada a tua ignorância, duvido que seja algo que vá para lá do meu nome. Não vale a pena explicar-te filosofias de vida e seus propósitos, se milhares de anos não te meteram juízo na cabeça, não vão ser as minhas palavras que o vão fazer. Ainda assim, vou tentar ser o mais simples e claro para ver se entra alguma coisa nessa cabeça dura. Temos dois tipos de pessoas: os parasitas que vivem à custa dos outros e só estão bem a fazer a vida deles num Inferno, os inocentes, que simplesmente procuram viver uma vida pacata e ajudando quem pode. É suposto tu tratares dos primeiros, não dos segundos!
            - Continuo a levar quem merece ser levado. Assim tem sido desde o início dos tempos.
            - Então ainda fico mais admirado por ninguém te ter despedido.
            Olhou para mim em silêncio por alguns segundos, até que:
            - Tomar a tua alma vai dar-me imenso prazer.
            - E porque não a tomas já? – perguntei eu, abrindo-lhe os braços – vá lá, faz de mim uma mensagem. Mostra a toda a gente que não se podem meter contigo se não vão desta para melhor. Vá lá, estás à espera do quê? De um convite por escrito?!
            Tomou novamente a sua foice, e eu avancei decidido na sua direcção, dizendo a cada passo:
            - Estás à espera do quê? Vá lá, mostra-me do que vales!    
Quando dei por mim, já estava diante dela, tão perto que podia sentir o seu bafo gelado.
- Infelizmente a tua hora ainda não chegou.
- Agora é por horas? Essa é boa.
- Mas o prazer vai continuar a ser todo meu… e ainda assim – distorceu um sorriso – é um tanto ou quanto interessante ver-te a defender a vida de alguns cuja morte tu mais desejas.
- Antes de ser humano sou um animal, e esse tipo de desejos são normais. Ainda assim, e se não estiveres satisfeita com esta resposta, estás a referir-te a uma parte de mim que já não existe.
- Tenho as minhas dúvidas.
Encostei a minha cara à dela, e continuei:
- Estás a meter-te com a pessoa errada, e se continuares com esta palhaçada, eu vou-te mostrar o porquê… e vou fazer muito mais do que tomar o teu lugar, para ser sincero, não o quero para nada, mas vou adorar humilhar-te e escapar ao teu toque.
- Sabes muito bem que isso é impossível. Mais cedo ou mais tarde a tua alma será minha.
- Tanto quanto sei, posso dá-la a alguém que não tu, e isso quereria dizer que a única coisa que irias encontrar seria o meu corpo a apodrecer, a sorrir e mostrar-te o dedo do meio.
Agora o sorriso tinha desaparecido:
- Vá lá, porque é que não me calas de vês? – perguntei eu, sorrindo.
- Terá que ficar para outra altura. Coisas mais importantes chamam a minha atenção.
E dizendo isto, abriu as suas esqueléticas asas e subiu lentamente pelo abismo em que nos tínhamos encontrado.
- Eu vou estar de olho em ti e tenciono cumprir tudo o que disse! Podes falar com os teus irmãos, não me importo, e se te encontrares com o Lúcifer, diz-lhe que eu digo olá.
Como a Morte funciona nunca iremos compreender. Será sempre visto como algo atroz e injustificado, havendo sempre quem diga que aconteceu por bem principalmente quando alguém está em pleno e puro sofrimento. Ainda assim, continua a não haver justiça, em nenhum dos mundos mesmo, pois quem realmente merece partir, está vivo e a transformar este mundo num verdadeiro Inferno.


Sem comentários:

Enviar um comentário