- Porque é que me
chamaste?
- Ainda tens a lata de me perguntar isso?
Do interior do seu capuz negro e corroído, lançou-me um
olhar que seria capaz de arrepiar e até mesmo de despedaçar qualquer espinha,
mas não a minha.
- Devias ter mais cuidado com as palavras que usas.
- Há alguma razão para isso?
Começou a grunhir e os seus ossos a estalar por força da
minha falta de respeito, e falou mais uma vez, na sua voz vazia e distorcida.
- Eu exijo respeito!
- Tens uma moral desgraçada para falar.
- SILÊNCIO!
E no fim deste berro atirou a sua foice na minha
direcção, cravando o chão mesmo mesmo à minha frente, a poucos centímetros dos
meus pés.
- Esperas que isso me meta medo? – perguntei eu, olhando
e colossal foice de cima abaixo – estás assim tão desesperada por respeito ou o
que quer que seja que procuras?
Nada disse, mas também não deixei.
- Deixa-me dizer-te uma coisa e é precisamente por isso
que te chamei… O QUE RAIO PENSAS QUE ESTÁS A FAZER?! Se não estou em erro era
suposto tu levares quem merece ser levado, não quem tem ainda tem muito para
dar e pessoas de quem cuidar!
- Eu continuo a fazer o que me compete.
- Então deixa-me dizer-te que precisas de arranjar uma
nova carreira e depressa.
- Eu não vou tolerar mais faltas de respeito! Um mero
mortal acha que me consegue substituir? Blasfémia!
- Eu não acho, eu tenho a certeza. Não sei o quão bem me
conheces, mas dada a tua ignorância, duvido que seja algo que vá para lá do meu
nome. Não vale a pena explicar-te filosofias de vida e seus propósitos, se
milhares de anos não te meteram juízo na cabeça, não vão ser as minhas palavras
que o vão fazer. Ainda assim, vou tentar ser o mais simples e claro para ver se
entra alguma coisa nessa cabeça dura. Temos dois tipos de pessoas: os parasitas
que vivem à custa dos outros e só estão bem a fazer a vida deles num Inferno,
os inocentes, que simplesmente procuram viver uma vida pacata e ajudando quem
pode. É suposto tu tratares dos primeiros, não dos segundos!
- Continuo a levar quem merece ser levado. Assim tem sido
desde o início dos tempos.
- Então ainda fico mais admirado por ninguém te ter
despedido.
Olhou para mim em silêncio por alguns segundos, até que:
- Tomar a tua alma vai dar-me imenso prazer.
- E porque não a tomas já? – perguntei eu, abrindo-lhe os
braços – vá lá, faz de mim uma mensagem. Mostra a toda a gente que não se podem
meter contigo se não vão desta para melhor. Vá lá, estás à espera do quê? De um
convite por escrito?!
Tomou novamente a sua foice, e eu avancei decidido na sua
direcção, dizendo a cada passo:
- Estás à espera do quê? Vá lá, mostra-me do que vales!
Quando
dei por mim, já estava diante dela, tão perto que podia sentir o seu bafo
gelado.
-
Infelizmente a tua hora ainda não chegou.
-
Agora é por horas? Essa é boa.
-
Mas o prazer vai continuar a ser todo meu… e ainda assim – distorceu um sorriso
– é um tanto ou quanto interessante ver-te a defender a vida de alguns cuja
morte tu mais desejas.
-
Antes de ser humano sou um animal, e esse tipo de desejos são normais. Ainda
assim, e se não estiveres satisfeita com esta resposta, estás a referir-te a
uma parte de mim que já não existe.
-
Tenho as minhas dúvidas.
Encostei
a minha cara à dela, e continuei:
-
Estás a meter-te com a pessoa errada, e se continuares com esta palhaçada, eu
vou-te mostrar o porquê… e vou fazer muito mais do que tomar o teu lugar, para
ser sincero, não o quero para nada, mas vou adorar humilhar-te e escapar ao teu
toque.
-
Sabes muito bem que isso é impossível. Mais cedo ou mais tarde a tua alma será
minha.
-
Tanto quanto sei, posso dá-la a alguém que não tu, e isso quereria dizer que a
única coisa que irias encontrar seria o meu corpo a apodrecer, a sorrir e
mostrar-te o dedo do meio.
Agora
o sorriso tinha desaparecido:
-
Vá lá, porque é que não me calas de vês? – perguntei eu, sorrindo.
-
Terá que ficar para outra altura. Coisas mais importantes chamam a minha
atenção.
E
dizendo isto, abriu as suas esqueléticas asas e subiu lentamente pelo abismo em
que nos tínhamos encontrado.
-
Eu vou estar de olho em ti e tenciono cumprir tudo o que disse! Podes falar com
os teus irmãos, não me importo, e se te encontrares com o Lúcifer, diz-lhe que
eu digo olá.
Como
a Morte funciona nunca iremos compreender. Será sempre visto como algo atroz e
injustificado, havendo sempre quem diga que aconteceu por bem principalmente
quando alguém está em pleno e puro sofrimento. Ainda assim, continua a não
haver justiça, em nenhum dos mundos mesmo, pois quem realmente merece partir,
está vivo e a transformar este mundo num verdadeiro Inferno.
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